A vela

Jonas terminou de responder à namorada antes de virar a chave e abrir a porta de casa. Passou rapidamente pela cozinha, a cabeça baixa, os polegares a golpear apressadamente a tela do celular. Ana preparava o jantar. - Oi, mãe. - Oi, filho. - Jonas foi direto para o quarto.

Não acendeu as luzes nem trocou qualquer palavra com a irmã. Deitada na cama desde a hora do almoço, Flávia também mantinha-se imersa em seu mundo virtual. A pele branca refletia o frenesi das cores em movimento, caleidoscopicamente projetadas em seu rosto a partir daquele pequeno ecrã luminoso.

Na sala, o pai abancava-se no velho sofá amarelo, as almofadas rebaixadas pelo sobrepeso do corpo cansado que arduamente suportavam, fétidas pelo excesso de suor e sebo daquela pele flácida, suja e enrugada, a tocar-lhe diuturnamente o estofado já encardido. Com um cigarro a carburar por entre os dedos, Djair acompanhava tediosamente o noticiário na TV e, assim, celebrava solitária e silenciosamente seu aniversário de aposentadoria, que completava dois anos aquele dia.

Em vinte minutos tudo pode mudar, anunciava uma passagem no intervalo do telejornal. Mas nada mudava. Nem em vinte minutos, nem em vinte horas, nem em vinte anos. Meras encenações pouco variadas de uma mesma história.

- Vocês viram isso?! - Djair gritou, tão alto que não se distinguia dirigir-se à família ou aos vizinhos do andar de cima - O ministro da educação disse que o Sol é que gira em torno da Terra! Um geocentrista! Era só o que me faltava! - Ninguém deu ouvidos a ele. Um pombo a arrulhar numa marquise suja, sem despertar interesse; a defecar na cabeça dos passantes, única forma de chamar-lhes a atenção. - Temos um presidente que proibiu a venda de produtos orgânicos, um governador que multa quem anda sem pressa nas estradas, um prefeito que desliga as luzes dos postes à noite para não incomodar o sono dos mendigos e, agora, esse ministro! - ele prosseguiu.

Na cozinha, Ana deixou a faca sobre a tábua de madeira, um pimentão e dois tomates ainda por fatiar, e foi até a sala. - O que você está falando aí sem parar, feito uma matraca velha, Djair? - Nada! Vocês não entendem! Não se preocupam com coisa séria. Levam essas vidas sem sentido, inúteis, enquanto o país está indo pro buraco! - Djair disse, irritado. Ana deu de ombros e voltou para a cozinha. A tranquilidade de suas feições escondia uma impaciência reprimida.

Enquanto isso, no quarto, Jonas alternava entre a definição sobre o que faria no fim de semana com a namorada, os comentários sobre o campeonato de surfe no grupo CutBack-Grumari e as confidências com o amigo Felipe, com quem compartilhava angústias e filosofava sobre a vida. Flávia mantinha as orelhas hermeticamente encapsuladas pelas grandes cúpulas de um fone de ouvido sem fio, indiferente ao que se passava dentro de casa. Acompanhava os últimos lançamentos da banda sul-coreana K.P.Co., sucesso mundial entre o público jovem.

Era uma noite banal num lar de classe média da zona sul de São Paulo. Até que todas as luzes se apagaram. Não só naquele apartamento. Toda a região fora tomada pelo breu. Ouvia-se somente o buzinar dos automóveis e o burburinho da vizinhança. Djair resmungava na sala, inerte, quando Ana apareceu. Trouxe em silêncio uma vela acesa; um pires de vidro como castiçal. Pôs a vela sobre a mesa de jantar e voltou para a cozinha.

As crianças permaneceram no quarto. Mal notaram a falta de energia elétrica; as baterias dos aparelhos celulares ainda durariam mais ou menos meia hora e o sinal de internet oferecido pela operadora não fora interrompido. Mas os minutos se passaram, as baterias dos celulares se esgotaram e a luz não voltou.

O primeiro a se levantar e ir até a sala foi Jonas. Flávia, ao ver-se sozinha na escuridão do quarto, levantou-se em seguida. Juntaram-se aos pais, sentados à mesa redonda, atraídos não pela companhia ou pelo jantar, que estava servido; não costumavam comer todos juntos; mas pela luz da vela ao centro da mesa, que permitia-lhes ao menos enxergar o que estivesse ao alcance daquele pequeno círculo luminoso.

Serviram-se, envoltos por um silêncio incomum; um vazio acústico que permitia-lhes notar alguns sons até então ignorados. O bater de talheres contra a louça dos pratos e travessas, produzindo notas estridentes, porém suaves. O movimento aveludado dos aspargos a desprender-se lentamente do creme branco que os envolvia. O suco de maracujá a afunilar-se através do bico da jarra, como o correr de um rio por entre pedras que tentam represar-lhe as águas, desembocando em estreitos copos de vidro incolor barato. E o mastigar pouco refinado de Djair, que ainda terminava de triturar com os dentes um pedaço de carne de panela quando comentou:

- Está demorando muito para voltar a luz. Obra dos russos, podem apostar. - fez uma pausa para mais uma garfada - Ou dos americanos... em quem confiar?

- Afetou praticamente o país todo. - disse, Ana - Parece que houve algum problema na usina de Itaipu.

- Aquela usina que pertence ao Brasil e ao Paraguai? - Flávia comentou - Ouvi alguma coisa sobre isso na aula de geografia mês passado.

- Uhum... - Ana respondeu com uma interjeição nasal. Diferentemente do marido, preferiu terminar de engolir antes de prosseguir - Se for isso mesmo, imagino que esteja faltando luz lá no Paraguai também.

Jonas permanecia alheio à conversa, mastigando devagar, a cabeça baixa, sem tirar os olhos do prato. Djair comia apressado, respirava com certa dificuldade e franzia a testa intermitentemente, como se estivesse envolvido em uma discussão silenciosa consigo mesmo. Flávia concentrava-se em cortar a carne em pedaços bem pequenos, depois a misturava ao suflê de aspargos, como se preparasse uma argamassa, que engolia quase sem mastigar. Romper aquele silêncio era tarefa espinhosa; uma atmosfera de viscosidade impenetrável, concentrada de um misto de prostração e uma estranha e constante tensão.

Djair terminou de comer. Um suspiro involuntário, cansado, liberou-se por suas narinas, como se evacuasse um turbilhão de pensamentos que se emaranhavam em sua cabeça. Apoiou o queixo sobre os dedos entrelaçados das mãos; os cotovelos sobre a mesa. Observou os filhos com olhar profundo e atipicamente atento. Jonas tinha o pescoço e os ombros largos. O rosto pálido pela falta de sol exibia alguns raros fios de barba espaçados e descoordenados. Não era mais um menino. Flávia conservava a inocência de uma criança, apesar de já ter passado dos treze. Trazia um arco rosa na cabeça. A franja, comprida, por pouco não cobria-lhe os olhos.

- O que é isso no seu rosto, minha filha? - Djair perguntou, apontando-lhe uma mancha mais escura na altura dos olhos - Não é nada, pai. Tenho isso há anos. - a menina respondeu impaciente.

- É bom levar essa menina ao médico, Ana. - Djair disse, enquanto servia um pouco mais de suco. Ana não respondeu. Observava a cena como se não participasse dela. Jonas, até então absorto em seus próprios pensamentos, ergueu levemente a cabeça e comentou:

- Essa vela… - fez uma pausa, olhos fixos na chama - Se não tivéssemos essa vela, estaríamos comendo no escuro. - completou, voltando a baixar a cabeça.

- Graças à sua avó Emília, meu filho! - Ana disse, em um tom de voz mais animado - Ela me ensinou a sempre ter velas em casa. Naquela época era muito comum faltar energia, não era, Djair?

Antes que o marido pudesse responder, o ambiente foi tomado por ofuscantes raios de LED, os obrigando a contrair pálpebras e pupilas. O silêncio foi interrompido pelos gritos eufóricos dos vizinhos a comemorar como se o Brasil tivesse ganhado mais uma copa do mundo. As ondas sonoras emitidas continuamente pelos milhares de pequenos motores elétricos, atravessavam novamente os corpos e, aos poucos, voltavam a tornar-se indiferentes.

Jonas e Flávia correram para o quarto. Precisavam recarregar a bateria dos seus celulares. Djair foi sentar-se no sofá. Ana recolheu os pratos e foi para a cozinha lavar a louça. Esqueceu de apagar a vela, a queimar solitária e impotente ao centro da mesa.