NAMORO - O PRINCÍPIO

Um dia em que, casualmente, almocei sozinho com a Telma, confidenciámos um ao outro vários aspetos da nossa vida pessoal.

Fiquei a saber que era natural da Guarda, filha única, tinha vindo para Lisboa ainda pequena, com os pais, à procura de uma oportunidade para melhorar a vida.

Ao longo da sua existência, tinham conseguido desenvolver um negócio e o pai, à custa de muito trabalho, constituíra um dos principais supermercados da zona de Benfica.

Depois de completar o sétimo ano do liceu, ela arranjara aquele emprego, já estava no banco há dez anos e esperava subir de nível salarial até ao fim do ano.

Confidenciou-me que ia completar vinte e nove anos em Julho. Sabia a minha idade, na altura vinte e três, mas parecia mais velho, não pelo aspeto mas sim pela postura.

Eu olhei-a com mais atenção e pareceu-me diferente, afinal não era desengraçada de todo. Surpreendeu-me o seu interesse por mim. Agradaram-me alguns aspetos da sua personalidade, sobretudo sabia o que dizia, era razoavelmente perspicaz e inteligente.

Domingo de manhã a Telma telefonou-me a perguntar se queria ir ao cinema, eu estava sem programa e aceitei o convite.

À tarde encontrei-me com ela à porta do Londres, para a sessão das dezasseis e trinta, comprámos os bilhetes e como ainda era cedo tomámos um refresco no bar junto à entrada. O filme em exibição era "O ovo da Serpente", do Ingmar Bergman, um drama sobre a evolução do nazismo.

Ela trazia um fato, casaco e calça branco cru, em algodão, que lhe assentava muito bem, não tinha ar de pronto-a-vestir.

Eu trajava como de costume ao fim de semana, jeans, casaco de malha cinzento e camisa de manga curta, azul escura, lisa ou aos quadrados.

Estivemos a conversar durante algum tempo e constatei que ela era bastante simples.

Fez-me várias perguntas e às tantas questionou-me em termos sentimentais, se namorava ou vivia com alguém. A minha resposta demorou algum tempo, por fim disse-lhe a verdade, tinha alguém, a Susana, mas a relação era quase platónica, poucas vezes nos encontrávamos, só dormira com ela duas vezes, e quando estava com ela era para ir a um cinema, ao teatro ou a um museu.

Ficou um pouco pensativa, a olhar para mim, por fim agradeceu-me a sinceridade, comentou que possivelmente outros homens na mesma situação teriam mentido. Eu disse-lhe que estava ali na posição de amigo, além disso, não tinha por hábito mentir...

No fim do filme comentámos que apesar de ser bom, não tinha correspondido totalmente às expectativas. Ela acrescentou - É como algumas pessoas…

Olhei para ela, tentando percebê-la e pressionei-a a explicar-se. Fixou o olhar no anúncio de um próximo filme a exibir e afirmou que no fundo sempre esperara que eu fosse completamente livre. Suspirou e vi-lhe uma lágrima rebelde nos olhos.

Eu dei-lhe uma palmadinha amigável no braço e disse:

- Então, o que é isso, para já podemos ser amigos, não?

Ela olhou-me de uma forma tão amargurada que eu não resisti, abracei-a e assim ficámos, junto da parede devido à fila de pessoas que ainda saíam do cinema.

Depois acompanhei-a de autocarro até perto da casa dela, no trajeto tomei-lhe a mão na minha, ela não a retirou e fomos assim toda a viagem.

Encostou a cabeça ao vidro da janela e as lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo.

Senti o meu coração dividido. Gostava da Susana mas esta Telma mexia comigo. Além disso, nunca pude ver ninguém chorar, ficava muito incomodado.

Quando o autocarro parou, pretendi despedir-me dela com um beijo na face, mas subitamente, pegou-me no rosto com ambas as mãos e beijou-me os lábios, um beijo quente, intenso, que lhe tirou o fôlego. Depois ficou muito juntinha a mim, abraçando-me, e senti-lhe o peito pressionando o meu, o seu coração batendo muito depressa.

Subitamente, rodou sobre si própria, afastou-se bruscamente num passo rápido e largou um "até segunda-feira" por cima do ombro.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 27/09/2019
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