Conto das terças-feiras – O menino Toba
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 24 de setembro de 2019.
Naquele tempo não havia bullying - prática de atos violentos, intencionais e repetidos, contra uma pessoa indefesa, que pode causar danos físicos e psicológicos às vítimas, assinala o dicionário. Éramos todos adolescentes e apelidados, isto é, poucos eram chamados pelo nome, alguns engraçados, outros não queriam dizer nada, mas também tinham os ofensivos. Esses, caracterizados por causa de um defeito físico, como falta de um braço, uma perna, falta de visão total, estrabismo, miopia etc. Outros relacionados com a cor da pele do indivíduo e a aparência com algum animal. Mas nada configurava violência, pelo menos assim acreditávamos.
O menino Toba, gordinho, nos seus 12 anos, de cor parda, ostentava uma barriga enorme. Nessa barriga sobressaia um umbigo também enorme, que até assustava às outras crianças. Diziam que foi erro médico, o umbigo não fora cortado no ponto certo.
Dada a cor de sua pele e seu umbigo proeminente, um garoto do círculo de amizade do Leonildo - esse era o nome verdadeiro do Toba - achou que aquela saliência na barriga do menino parecia um jatobá, que são vagens arredondadas de cor escura e possuem sementes envolvidas por uma polpa amarelo-pálida, farinácea, adocicada, comestível, de sabor e aroma característicos.
Daquela data em diante todos passaram a chamar o Leonildo pelo codinome Toba. Muitos garotos da rua não conseguiam identificar o apelido ao menino de barriga e umbigo grandes. Os que não conheciam a origem do prosônimo do garoto não viam relação nenhuma com a sua aparência, comportamento ou origem social. Ele era, sim, meio bobo, leso mesmo, vagaroso e descuidado, nada de vidro que lhe caía à mão ficava inteiro, ele deixava cair, quebrando-se. As desculpas eram sempre as mesmas, foi sem querer! Ele era pobre, todos sabiam, mas não se importavam com isso, a sua generosidade e prestatividade eram imbatíveis. Só os membros das conversas na calçada sabiam a origem desse apelido.
Chamado assim, Leonildo, sem entender bem o que significava, sorria. Chegou até a confessar para os amigos que gostava de como era chamado, o que ele desejava era continuar pertencendo ao grupo.
Assim ele ia crescendo, feliz da vida, pois, quando não aparecia na calçada onde o grupo se reunia, os amigos ficavam se interrogando: será que ele adoeceu? Ficou zangado com algo que dissemos sobre ele? Nesses dias as risadas eram poucas, muito dos assuntos ali tratados tinham relação com as travessuras – ou desventura – do menino Toba. E eram tocados mesmo na presença dele, que ao ouvi-los, ria de si mesmo.
Certa tarde ele não se juntou ao grupo. Esperaram trinta minutos e nada. Como sempre, esses encontros seguiam certa formalidade, adolescente querendo imitar adultos. Havia o presidente, o secretário e os membros superiores e inferiores, os primeiros, os mais adiantados na escolaridade. O presidente e secretário eram votados semanalmente, para estabelecer rodízio. Só poderia ser presidente os de maior grau escolar, o secretário, qualquer um dos membros. Eram onze ao todo, contando com o menino Toba, esse não poderia ser votado, mas votava. A nenhum era dado o direito de pleitear voto, principalmente àquele que jamais poderia ser eleito.
Pois bem, naquela tarde ele não aparecera, ninguém havia estado com ele naquele dia. O garoto que chegou por último à calçada democrática, como também era conhecido aquele local, disse que ao passar em frente à casa do menino Toba, notara algo estranho. Algumas pessoas na sala chorando, um caixão de defunto, vela acesa, e rezas. Não parou para olhar porque tinha medo de ver cenas assim. A sessão foi encerrada, com a deliberação para todos irem até à casa do amigo faltoso. Ao chegarem, constataram que no caixão jazia o corpo do menino Toba, o amigo Leonildo. Fora atropelado quando, pela manhã, logo cedo, saíra de casa para comprar pão. Ao atravessar a rua displicentemente, foi colhido por um veículo em alta velocidade que fugiu sem prestar assistência. Os pais foram avisados pelo pessoal da padaria.
Na praça, em frente à casa do menino Toba, havia um Jatobá de quarenta metros de altura (Hymenaea courbaril), que naquele dia mostrava-se florido. Um espetáculo nunca visto, era a primeira vez que florava. Os membros do clube da calçada resolveram, então, prestar homenagem ao amigo, e foram rezar ao pé da grande árvore. Ali, alguns deixaram objetos pessoais e voltaram tristes para as suas casas.