A invisibilidade das ruas
Manhã fria de inverno e estou a caminho do trabalho, quando viro a esquina, deparo-me com a cena deplorável. Homens armados agridem moradores de rua, que se utilizam das calçadas e marquises para passar a noite. Meu coração dispara diante daquela violência. Estou assustada e quero sair dali, e minhas pernas não me obedecem.
Moradores de rua se levantam rápidos, com seus pertences nas mãos, e correm para não apanhar. Um deles tropeça e cai; o outro volta para ajudar, mas é golpeado na cabeça e perde os sentidos. O guarda obstinado, ameaça bater novamente, mas populares intervêm e impedem que a agressão continue.
A viatura da polícia, que está em alerta e preparada para aquele momento, rapidamente leva o morador de rua ferido para a emergência de algum hospital. Ele é apenas um dos tantos miseráveis, sem identidade, tratado que nem lixo descartável pela cidade grande.
É a limpeza diária da cidade. A calçada deve estar livre para o comércio abrir as portas, expor suas mercadorias, e o consumidor transitar sem ser incomodado. O tempo não para, e a busca pela riqueza tem pressa. Enquanto correm atrás do dinheiro, esquecem que o maior investimento é contabilizar pessoas.
O velho de rosto pálido, olhos fundos e barba branca, surge a minha frente. Ele se arrasta lentamente como quem negocia com o peso dos anos. Leva às costas a sacola de quinquilharias, onde carrega tudo o que junta na rua ou ganha das pessoas. Balbucia algo ininteligível e paro para ouvi-lo. Aos oitenta anos, ele se queixa da catarata na vista e da memória que o faz esquecer muitas coisas.
A barba longa do homem, maltrapilho e sem destino, lembra-me a figura de Santo Agostinho e de suas palavras sobre a predestinação: "a vida é previamente traçada por Deus, cuja salvação não depende dos próprios humanos."
Curiosa, pergunto ao velhinho, de supetão:
– Por que está aqui?
Ele me olha com espanto e diz:
– Essa pergunta é como mexer no vespeiro; mas, ainda assim, eu lhe responderei. Não conheci meu pai. Minha mãe casou-se com um homem que não valia nada. E meu irmão queria que eu fosse igual a ele. Então, eu me casei, tive dois filhos, que morreram num acidente junto com minha mulher. Por isso vim parar na rua. Aqui sou eu mesmo...e sorri, sem graça.
Emanuel está há quarenta e um ano na rua, entre idas e vindas, e a sua única preocupação é manter-se vivo. Vê moradores de rua morrerem todos os dias, resultado de brigas e crimes encomendados. Quando isto acontece, acende-se uma vela para cada morto e ninguém lembra mais.
A grande família da rua tem muitas histórias. Jovens, velhos e crianças, homens e mulheres são capturados pelas drogas ou mesmo pela falta de perspectiva na vida e não conseguem retornar para o mundo que um dia habitaram. Filhos do abandono, eles se ajudam na adversidade e exercitam a solidariedade no pedaço de papelão, na manta e até nos restos de alimento.
Então, volto a questionar Emanuel?
– O que mais lhe incomoda na rua?
– É ser invisível para as pessoas. E nada pode ser mais vazio na vida de um ser humano do que não ter utilidade.
Deixo-o, e sigo refletindo sobre a fragilidade da vida. Como impedir que a ganância transforme a sensibilidade em pedra?