Um rastro de solidão

Na manhã de sábado, o clima era de férias na fazenda, quando Sete Quedas desapareceu. O sol intolerável repontava o gado para a sombra da majestosa figueira em frente ao casarão. O silêncio só era quebrado pela sinfonia de pardais, que resplandeciam a natureza toda em festa.

Ao meio-dia, ele não apareceu para o almoço. A sua ausência nem foi notada. Há dias andava cauteloso e parecia dominado por alguma tristeza. O apelido de Sete Quedas surgiu, quando rolou ribanceira abaixo, transpôs sete obstáculos, e ficou em pé novamente. Era um sobrevivente tão animado como nunca se viu outro igual.

Conta-se que certo dia, ele vasculhava o chão como quem procura algo perdido. Em dado momento, levantou a cabeça, viu a porta aberta, contornou o aramado, esgueirando-se rente à tela e entrou no pátio proibido. Passou pelo canteiro de flores e foi deitar-se em cima da mais bela e rara planta do jardim. Ceciliana, a dona da casa, viu a destruição da pesquisa da faculdade, que cuidava com tanto zelo, e escorraçou Sete Quedas.

O cão deu um sobressalto, espiou sua dona e calculou o risco; baixou as orelhas, escondeu o rabo entre as pernas, mirou a cancela aberta e correu para não ser alcançado. Venceu os limites daquela prisão provisória e partiu para a liberdade. Mas ao sair lá fora, ainda envergonhado, atrapalhou-se, e sem saber que rumo tomar, andou de um lado para o outro, até que alinhou a direção e seguiu a trilha sem olhar para trás. Saiu como a dizer: chega de migalhas! Vou embora e não volto mais.

Foi a última visão de Sete Quedas.

Ele sabia a hora de sair de cena. Quando escorraçado, demonstrava um semblante submisso; baixava a cabeça e bombeava por debaixo dos olhos, analisando a situação. Encolhia-se todo e andava para trás, sempre encarando o perigo de frente, mesmo quando acuado pelo medo.

Talvez por precaução, costumava ficar distante, olhando de longe o cenário, até que esquecessem o que ele fez, e então, voltava lépido e faceiro. Os ânimos serenavam e tudo retornava a ser como antes. Ele sacudia a cauda, lambia as mãos e se enroscava nos pés das pessoas como a pedir perdão. Na reconciliação mostrava-se arrependido do mal feito.

Desidério, o capataz da estância, lembra o dia que foi salvo do golpe de uma cobra. Sete Quedas abocanhou a cabeça da jararacuçu e saiu com ela pendurada no focinho. Aquela valentia quase lhe custou a vida. O furo na orelha direita era a marca de um tiro que levou ao avançar contra o cigano que ameaçava o patrão. Cravou a mordida e deixou sua marca na perna daquele homem corpulento, quase obeso, de olhar atrevido e riso fino.

Faz uma semana e Sete Quedas não voltou. Ceciliana sente sua falta, mas ele não sabe a falta que faz. Nunca soube o quanto era amado, porque só conheceu a censura e o desprezo. Em algum lugar, talvez viva da caridade alheia, sem o aconchego de um lar.

A peonada da fazenda anda ressentida pela falta do companheiro. O amigo da lida campeira era ligeiro como um raio. Agora quem vai dar o alarme para anunciar a suspeita de algo estranho na querência? Quem vai preencher seu lugar com a mesma ousadia?

O ser humano ainda não enxergou que se os animais desaparecerem da face da terra, ele morrerá de solidão.