As Panelas do Tempo
A saudade é o bolso onde a
alma guarda aquilo que perdeu.
Ruben Alves.
Aqui nas roças do sul de minas gostamos de receber e nos reunir na cozinha de nossos lares: prosear; cantar; e participar no preparo e degustação de delícias inesquecíveis, inefáveis, servidas no rabo do fogão de lenha, degustadas com o prato nas mãos, acocorados em degraus e em tamboretes de couro cru.
O maior cômodo de minha casa já foi a cozinha. Saudáveis dedos melecados com caldo de pedaços com ossos do frango caipira e macaúba e macarrão e arroz e fartura. Tudo é tão bão! Bebericamos também boas cachaças, o coração da destilação.
Sobremesas mil, mas as mais desejadas são as compotas, os pés de moleques e o inigualável melado de cana, que translúcido enrola no garfo e com queijo ou farinha de milho, e água na boca só de lembrar.
Famílias numerosas, no meu avô paterno, foram 21 filhos. “Filho se cria e se educa para mundo”, assim procedemos. Quando adultos saem para enfrentar vida própria, e a própria vida, o lar deixa de ser casa de meus pais, para ser a casa dos meus pais! Faz parte!
Espalhamos randomicamente pelo Brasil. Fui estudar na cidade, e com minha formação em exatas, engenheiro, vi isso nas nossas panelas, nas quais preparamos os cafés, os bororós, as pamonhas, os almoços, os jantares, as guloseimas, e as ceias que alimentavam as relações de família com ingênua afinidade e pertencimento.
Matutando pensei e reconheci: - As panelas de nossas casas, a da casa dos avós, a dos pais, a minha..., se modelam como curva de distribuição normal (Gauss), com distribuição assimétrica à direita/positiva; desde o casamento dos pais, crescente em quantidade, volume e forma, isto, até quando do casamento dos filhos, que arremetem e voam por destino e sorte, quando então decrescem exponencialmente, com o esvaziar do lar.
A cada um que saia da fralda, panela maior tinha que ser agregada. A cada um que sai para a vida, para a epiméleia heautoû (cuidar de si, com o viés de Platão), panela menor, da despensa, era “desarquivada”.
Sempre sobram dois naquela imensidão de silêncios e recursos domésticos, e ambos, tudo preservam, pois logo voltarão, nem que seja por uns dias, para que as vivências guardadas da família, sejam reavivadas.
Percebia também os avanços da tecnologia nos materiais das panelas, do barro queimado, ao ferro, ao cobre, ao alumínio batido e as de vidro e umas que se usa em fogão sem fogo, vichi! Modernices que estão disponíveis, mas o sabor da comida de nossa mãe se faz com as panelas véinhas e intensamente usadas, areadas, asseadas, lustrosas e dependuras pelo tênue fio da imaginação.
Ficamos na expectativa das reuniões em datas de ajuntamento familiar, das ceias com todos juntos, netaiada, genros, noras e até mesmo cunhados... rs; é quando usamos as panelas do meio da vida, as grandes, essas que também ficam na espera desses prazerosos eventos, elas fazem parte da família.
As panelas e tachos maiores de grande, usamos nos dias de festa, no alimentar dos foliões de Reis, do Divino, dos Pastores, das Pastorinhas, das Novenas, do terço de São Gonçalo; vizinhança amiga reunida.
Só o bule com chá de alfavaca, canequinhas de ferro esmaltado e a gamela com biscoito ficavam na janela, na quaresma, (dinoitão, temor da meninada, mais até que dos bastião ou palhaços da folia de reis) do lado de fora, para os alertadores, que a capela, entoam o cantar matraqueado da reza para as almas (parusia e anagogia). Canto belo, sentido, que reverberava mais longe que o cantar dos galos no alvorecer, fincando lamentosa melodia em corações saudosos, amenos e inquietos.
Depois que os filhos saem nos vemos guardiões na casa, com abertos braços apoiados no umbral da porteira do devir, esperando o doce regresso; com sorrisos, com esperança e com amor. A espera é só um detalhe, pois vale a pena, não importa o quanto demore!
Panelas do tempo, jucundamente vinculadas, inextrincavelmente, ao giro da indefectível evolução e involução, das idas e das vindas: com reflexo verdadeiro – luz - no espelho enigmático da ilusão, e nos ciclos familiares das famílias...
Disse Ovídio “O tempo é devorador de todas as coisas”, e a saudade, mora num recanto, que se chama casa de pais!