O fardo

O funcionário por trás do balcão, um homem de meia idade e bigodes grisalhos eriçados, lançou um olhar preguiçoso para o jovem que acabara de entrar no posto de registro eleitoral.

- Boa tarde! Eu vim pagar a taxa de registro - anunciou o recém-chegado.

- Custa um dólar - retrucou o funcionário, sem se mexer.

- Eis aqui - o homem pôs uma moeda sobre o balcão. Nenhuma reação do servidor.

- Como é o seu nome, rapaz? - Indagou, em tom paternal.

- Booker, senhor. Booker Johnson.

- E de onde você vem, Booker?

- Do Texas, senhor.

- Ah, devia ter imaginado - o funcionário reclinou-se em sua cadeira, braços cruzados. - Um forasteiro. Melhor guardar seu dólar, rapaz.

- Bom, senhor... se o registro custa um dólar, eu tenho como pagar - redarguiu Booker em tom firme, mas polido.

- Diga-me, Booker... você sabe ler e escrever? - Inquiriu o servidor.

- Sim, senhor. Trabalhei num armazém de secos e molhados em Austin - afirmou Booker com orgulho. - Posso passar em qualquer teste que exijam para o registro eleitoral.

- Imagino que sim, rapaz - acedeu o funcionário, pensativo. - Mas há uma outra condição, e essa é a mais importante de todas...

Fez uma pausa, antes de acrescentar:

- Antes da Guerra de Secessão, os seus avós tinham direito ao voto?

Booker franziu a testa.

- O que os meus avós têm a ver com isso, senhor?

O servidor abriu as mãos, como se estivesse surpreso.

- Não sei como é lá no Texas, Booker, mas neste estado, você só pode votar se comprovar que seus antepassados eram homens livres. E eleitores.

Booker balançou a cabeça, em silêncio.

- Compreendo - disse finalmente, recolhendo a moeda que colocara sobre o balcão.

- Votar é uma tarefa de grande responsabilidade, rapaz - declarou o servidor. - Deixe que nós, descendentes dos fundadores deste país, carreguemos este fardo sozinhos.

- Muito bem, senhor - redarguiu Booker, tocando na aba do chapéu coco. - Tenha uma boa tarde.

- Igualmente, rapaz - replicou afavelmente o funcionário.

Observou o jovem sair do posto eleitoral, e só então comentou com outro servidor, que ouvira a conversa calado:

- Está vendo, Lewis? Começam dando direito de voto a negros, daqui a pouco até mulheres irão exigir o mesmo.

O interpelado aquiesceu.

- Tempos modernos, Hasseling, tempos modernos.

- [15-09-2019]