BACTÉRIA: DESUNIÃO RINGS
O sinal ensurdecedor da escola acusava o horário do recreio. A bagunça generalizada de sempre se fazia acontecer. Todos os demais alunos pareciam querer fugir de uma bomba atômica, tamanha a pressa. E logo, aos poucos e a passos não tão rápidos, se juntavam ao resto do rebanho das demais salas já no corredor. A regra era clara: Ninguém podia ficar na sala em horário de recreio. Eu, que nunca fui dos mais ágeis - e me deixavam sempre ciente da minha dificuldade em alguns aspectos - sem pressa colocava livro por livro, caderno por caderno, lápis e canetas em cada bolso da mochila. Cuidadosamente. Faltando os dois ou três últimos alunos, eu sempre me levantava, mas, fingia procurar algo na mochila, enquanto a professora, igualmente apressada, me aguardava já na porta da sala com suas postilas num dos braços e óculos lisos, reluzentes e arredondados sobre os olhos. Ela tinha sardas ao redor do nariz. Dessa vez, eu reparei que ela torcia de leve os joelhos e uma das pernas estava mais dobrada que o normal. E logo, a suspeita se revelou real.
- Alisson, preciso ir ao banheiro, você tranca aqui quando sair?
Ta bo...m. - Tentei responder.
Ela saiu antes da resposta, que, obviamente seria sim. Afinal, qual tipo de aluno eu seria se desobedecesse a uma professora?
E desobedecendo a professora e as regras, eu não tranquei a porta e não saí da sala.
Naquela época, já haviam colocado as portas com trancas que chamavam de "Inteligente". Só quem estava dentro conseguia abrir a porta, pois não havia maçaneta do lado de fora e a maçaneta era justamente a chave. Cada professor tinha uma que carregava pra todo canto nos enormes bolsos daqueles aventais-coletinhos brancos. Todas pareciam a minha vó vestidas naquilo. Aquilo passou a evitar muitos furtos de materiais, pertences e dinheiro dos alunos.
Eram trinta minutos de intervalo, o que significava paz. Era só eu, a Turma da Mônica e algum lanche que eu trouxesse pra comer, quase sempre pao com manteiga. Acho que era margarina. Enfim, o que for mais barato. Quando acontecia de ganhar uns trocos la em casa, eu juntava para, uma ou duas vezes por mês comprar na porta da escola um pacotinho com exatamente 10 anéizinhos de salgadinho(DEVIA SE CHAMAR "SALGADÃO" ou "AI MINHA PRESSÃO" OU "TAMALUKO?")sabor cebola.
Uma vez eu olhei pra uma daquelas argolas do Sônic sabor cebola e me indaguei:
"Imagina que maluco se aquilo fosse uma cebola de verdade. Não, ninguém compraria um anel de cebola muito salgado e crocante".
Dez anos depois eu ouvi falar num tal de "Onion Rings". Eu tive a chance e provei. Sinceramente, eu prefiro o meu velho salgadinho "FIA MEDE-MINHA-PRESSÃO" com aroma falso de cebola.
Faltava uns dez minutos pra manada voltar pra sala quando o Eith entrou na sala correndo.
Ele era de origem Indiana, mas desde que se lembra, viveu aqui. Acho que chegou com uns 2 anos. Ele entrou na sala já dando um 360 com o corpo e no embalo fechando a porta com a trava. Pronto. Estávamos trancados alí. Geralmente eu deixava a porta apenas encostada e faltando dois minutos pro sinal bater, eu descia pra ir ao banheiro e subia de volta com todos. O crime perfeito. Mas, dessa vez um giro de 360 com duplo carpado levou o Ouro e vi indo embora o sonho do Exa mais uma vez.
- Você trancou a gente. - Informei.
-AI, CARALHO! Que susto da porra. Ta fazendo o que aí, Alisson?
- Eu ia dizer que era o mesmo que você, mas acho que não é não. Ta fugindo de quem?
- De ninguém não, só subi antes. E você, ta de castigo?
- Quem me dera ficar sozinho fosse castigo, ia querer todo dia. Quer salgadinho?
- Não, odeio cebola.
- Mas, nem tem cebola de verdade, é só uma química que faz parecer.
- Eu odeio química que só faz parecer. Toma, guarda pra mim? - Ele me estendeu uma nota de cinquenta reais.
- Mas...
- Amanhã eu pego com você.
- O que vocês estão fazendo aqui? - Questionou a professora Ekena, de artes, entrando de repente.
- Fecharam a porta, professora, enquanto eu pegava o meu lanche. Quer salgadinho? - Respondi mentindo, mas com simpatia.
Ela voltou com a cabeça para fora da sala e encostando de leve a porta veio saltitando na minha direção.
- O que deu de lanche hoje lá embaixo, professora?
- Arroz com salsicha. Eu odeio aquilo, só o cheiro já... - Ela mostrou a língua.
- Eu também não gosto. - Respondi observando o olhar vidrado e brilhante que ela tinha.
- Eu amo esses de cebola. Agora arruma rapidão que eles já estão subindo. - Ela disse sorridente e de boca cheia enquanto escondia mais alguns dos cebolitos num dos bolsos do avental. Quando olhei ao redor, Eith havia sumido. Nisso ele era bom, fazer as coisas sem ser notado. Foram mais três aulas e a hora de ir embora chegou.
A escola ficava a cerca de oito minutos, caminhando, da minha casa.
Quando se caminha, existe o privilégio de ouvir fragmentos de conversas dos que passam por nós ou por quem passamos.
Naquele dia, lembro que formou-se um diálogo desconexo, mas engraçado.
- A Mirian embuxou do Cleito.
- Jura? Mas, e...
- A Megasena de ontem sorteou um...
- Filho da puta! É melhor ele devolver em três dias no máximo. Ô fióti...
- "Tira a calça Jeans, bota o fio dental...".
Dei um tranco no portão de casa e entrei. Morava eu e a minha mãe. Ela não trabalhava,mas as vezes fazia e vendia gelinho, que basicamente era suco congelado num saquinho. Acho que em cada estado tem um nome: Sacolé, Geladinho, Frau, Sorvetinho, Gelinho. Não havia nada nas panelas. Nem geladeira. Na geladeira tinha uma garrafa de água e um pedaço de pudim de pão de anteontem. Era velho, mas era dela. Ninguém tocava.
- Mãe, não tem arroz?
- Tem não, meu filho, acabou. Eu tô sem dinheiro pra comprar. Você não comeu na escola?
- Comi... - Menti, lembrando de me empanturrar de salgadinho de cebola.
- O que deram hoje?
- Ah, foi só arroz com salsicha.
- Você não comeu, né?
Não respondi, mas o meu foco na panela vazia sobre o fogão a fez entender.
- Vai lá no Seo Badulaki e pega um cachorro-quente pra você e um pra mim. Pede fiado e fala que depois pago. - Ela me disse.
Três minutos depois eu encarava a barraquinha de cachorro-quente do Senhor Badulaki enquanto ele me perguntava o que eu ia querer. Eu ainda não havia avisado a ele que seria fiado, enquanto eu sentia no bolso da calça a nota de cinquenta reais.
- Eu vou querer tudo. Pode completar os dois. - Eu nunca havia dito algo com tanta certeza e confiança. Meus joelhos nunca havia tremido tanto também. Alí, naquele segundo, eu me fiz adulto. Eu menti. Eu fui desonesto e corrupto. Eu estava pronto pro mundo.
- Cadê tua mãe? - O Senhor Badulaki perguntou enquanto me empunhava os enormes cachorros e recebendo os cinquenta reais do Eith.
- Tá em casa, tô levando pra ela também.
- Ta certo. Toma, vê se gosta, precisa pagar não - Ele me deu um doce que eu nunca tinha visto. Era de abóbora e em formato de coração. Eu não gostei, mas não disse nada.
Eu estava sentado á mesa mastigango o cachorro quente e por alguns segundos parei e contemplei a minha mãe comendo com gosto(e fome) aquele cachorro quente. Pela segunda vez na vida e no mesmo dia, eu me senti adulto. Eu provi algo á minha mãe.
- Uí ei aou?? - Ela perguntou com a boca cheia e dicção prejudicada.
- O que? - Fingi não entender.
- O que ele falou, quando você falou que depois eu pagava? - Ela disse após engolir com dificuldade.
- Eu paguei com dez reais que eu achei hoje, vindo da escola. Achei na frente do mercadinho.
- Você achou mesmo?
- Aham. - E dei a maior mordida possível pra não ter que responder nada nos próximos cinco minutos. No bolso, o troco. Quarenta reais.
No dia seguinte, eu acordei com febre e uma dor muito forte no estômago. Minha mãe fez um chá qualquer de umas folhas que encontrou na praça em frente de casa. Eu não fui para a escola. Naquele dia eu vi pela primeira vez o Chaves ser injustamente chamado de ladrão.
Eith não foi pra escola no dia seguinte. No outro também não. Apesar de malandro e arruaceiro, não era costume. No terceiro dia, aquele troco ja envelhecido que eu carregava nos bolsos há mais de 48 horas, começou a dizer o meu nome. Presumi e criei pra mim mesmo que Eith havia se mudado com os pais para outro estado ou talvez país. Aqueles quarenta reais eram meu por direito.
O carro de doces e salgadinhos em frente a escola me chamou. Ninguém pareceu reparar na minha mochila um pouco mais volumosa que o normal.
Para o meu azar, naquele dia ele apareceu. Tinha um galo na testa. Todos os professores se assustavam e perguntavam o motivo. Ele repetiu a mesma história em todas as vezes.
- Eu tava no gol e bati na trave. Acontece.
Ninguém comentava, mas era perceptível por todos a estranheza que era ver ele tão calado. Todos os alunos da escola tinham medo dele, que, muito mais alto, naquele dia fez sombra no caderno do Diego Empadinha. Dessa vez, não foi para intimidar. Não foi para dar rápidos e doloridos soquinhos na barriga dele. Eith apenas pediu o apontador emprestado. Devolveu. E agradeceu. O ano era 1997 e tenho certeza de que o "Bullet time" nasceu alí. Chupa essa, Wachowski!
O mundo dentro daquela sala parou e ao ouvir aquela voz agradecendo, todos se viraram para ter certeza de que foi Eith quem disse aquilo. Ele, porém, pareceu não reparar enquanto anotava a lição da lousa. Seja lá o que aconteceu com ele nos dois dias anteriores, o mudou.
O sinal ensurdecedor avisava o intervalo. Segui com o meu plano de paz e contemplação de tentar ficar sozinho na sala. O último aluno saiu e feito. Porta trancada. Quarenta reais em salgadinho e me senti um verdadeiro Tony Montana dos salgadinhos de milho saborizados. Ok, eu nem sabia o que era Scarface, mas quando vi o filme lembrei. O deslumbre.
Eu havia contado com a mudança de comportamento e talvez perda de memória do Eith. Até a porta abrir de repente e ele surgir apressado. Sabe-se lá como, ele tinha uma das chaves sempre com ele.
Ele me encarava e parecia transtornado enquanto se aproximava.
- Quer? - Ofereci um dos pacotes de Cebolitos..
Ele jogou longe e ainda de pé perguntou o motivo de eu não ter ido pra escola. Disse que havíamos combinado pra devolver o dinheiro pra ele. Ele puxou a minha mão esquerda com violência e me fez tocar no galo na testa dele. Disse que era culpa minha.
- Me da o dinheiro, vai.
Eu estava apavorado. Não era o mesmo Eith do início da aula.
- Eu... Eu...
- Vai logo, preciso já, antes que termine o recreio.
- Eu... Eu perdi. Eu deixei aqui embaixo da mesa e quando voltei do banheiro tinha sumido.
- Não, não é verdade, da logo.
- É sério, eu... - Os olhos marejados dele me interromperam.
Ele me ergueu pelo pescoço com as duas mãos e me sufocava enquanto os olhos vertiam mais e mais lágrimas. Ele não disse nada, só emitia um gemido que parecia preceder o choro que nunca veio. Ao menos não na minha frente. Ele me largou e saiu batendo com a chave-maçaneta em todas as mesas no percurso até a porta.
Foram mais três meses sem notícias de Eith. Dessa vez, eu tinha a mais absoluta certeza de que ele havia de mudado de escola, ao menos.
No dia 08 de Abril de 1997, um corpo foi encontrado num bueiro desativado próximo á quadra de futebol, no fundos da escola. Entre um falatório e outro, a notícia que chegava era de que era um adulto ou ao menos adolescente, pela altura. O corpo estava em extremo estado de decomposição, já que havia uma boa quantidade de terra, minhocas e larvas, principalmente sobre o rosto. As aulas foram suspensas.
Três semanas depois pudemos retornar para a aula e uma núvem densa parecia permanecer sobre a escola. Ekena, a nossa professora legal, presenciou e gravou o abuso sexual de um funcionário da escola com uma das professoras. A denúncia foi feita e outras professoras e mais dois alunos disseram ter sofrido o assédio incial. Disseram que ele oferecia cinquenta... reais...
A ficha caiu enquanto eu caminhava de volta pra escola após mais alguns meses em recesso. Eu voltei imediamente pra casa. Aquele funcionário não estaria lá, eu sabia. Mas Eith também não. E daquele dia em diante eu senti um travasseiro de concreto nos ombros e o chamei de Culpa. Aquele corpo, por algum motivo nunca foi identificado. Mesmo com impressões digitais. Mesmo com a arcada dentária. Mas, em mim, sempre houve a certeza de que era Eith.
Eu já tinha vinte e cinco anos. A minha mãe havia morrido no acidente da TAM. Ela trabalhava naquele prédio.
Eu tinha um emprego modesto, mas que já me pagava os lanches e boletos.
O dia tinha sido de grande stress e resolvi entrar numa daquelas portas de neon. Eu, que já havia secado uma garrafa de vinho no caminho, fui direto para o quarto e disse para a dona que mandasse quem estivesse disponível.
Deitei de braços abertos na cama e observei as luzes exageradamente vermelhas que giravam no teto. Fechei os olhos e abri quando ouvi a porta fechar. Senti o movimento do colchão pender e abri os olhos. Quando se bebe, chega um ponto em que a realidade não importa, acreditamos no que a bebidade quer que vejamos e tudo o que eu vi foi:
- Professora??
Ela deu um pulo da cama o que me atordoou um pouco mais. Sentei e entre olhar pro chão e pra ela, tentei focar o máximo que pude.
- Quem é você? De onde você me conhece?
- Professora. É você mesma. A das sardas. Claudia, né? Eu fui seu aluno.
Ela devia ter quase quarenta anos, mas o rosto era o mesmo. Expliquei de onde eu era e que era o que sempre ficava por último na sala. Não fizemos nada, mas pra não dar viagem perdida, ela que era casada e tinha vida dupla, se masturbou e usou um vibrador para intensificar. Algo me foi familiar e pedi que ela usasse o vibrador estando de pé próxima a porta. Fez sentido todas as vezes em que achei que ela estivesse querendo fazer xixi na escola, sempre apressada e de pernas torcidas. Fez mais sentido ainda quando ela disse que era obrigada a usar o vibrador na escola pelo funcionário que foi pego abusando de alguém.
Eu fui o seu último cliente da noite.
Como o marido estava viajando, supostamente a trabalho, ela indicou uma boate onde conhecia a todos, mas me alertou aos shows de dança e strip que eram só com Drag Queens.
Nos beijamos algumas vezes e sob o efeito do alcool, aquelas sardas ao redor do nariz pareciam brilhar.
- Vou ali no banheiro. - Ela me berrou no ouvido, por conta da música extremamente alta.
Um show foi iniciado no palco. Era uma morena de pele brilhosa e delicada. Ela dublava uma música qualquer que não consigo lembrar e enquanto dava passos firmes, olhava profundamente nos olhos dos poucos clientes. Era magra, de olhar penetrante e tinha lábios dígnos de uma Jessica Rabbit.
Passou o olhar por mim e pareceu estranhar. Voltou a me olhar, sempre com um meio sorriso, o que dava um charme a mais. Eu não sei em qual momento pós alcool eu virei crítico de Drag Queens, mas aquela já era a minha preferida.
Do bar, eu vi a professora vindo com uma pacote de Cebolitos.
Com passos firmes e delicados, a Drag Queen seguiu em minha direção e com a bengala que emprestou de um dos clientes a meu lado, ela me abriu as pernas, virou de costas e rebolou, quase sentando em mim. Todos ao redor comemoraram como se fosse gol. A Drag se virou pra mim e apoiando as mãos nos meus ombros, enclinou-se, em modos de rebolar pros demais clientes da casa e no ouvido me disse:
- Veio me devolver os cinquenta reais?
FIM.