Restos de vida

A pergunta saiu como um tiro seco:

-A vida que você tem te basta?

Não fosse a cabeça um pouco leve pelas várias cervejas num fim de tarde de sábado, talvez eu dissesse que sim. No entanto, meu estado de semi embriagado me faz sentir como se eu fosse um filósofo desafiado. Na obrigação de mostrar que sei ser um ser lógico.

Ao invés de cuspir a resposta sem passar pelo crivo da reflexão, coloquei a mão no queixo num estereótipo de alguém que está pensando, e me pus a lembrar de alguns pontos dessa minha vida besta.

A pergunta, embora simples, era de uma complexidade quase imperceptível, afinal, como classificar uma vida em termos de suficiente ou não? Pensei primeiro em questões financeiras: bom, estou longe de ser tranquilamente bem estruturado. Sou como uma boa parcela de pessoas que parcelam suas compras no cartão, faz contas e mais contas sobre poder ou não viajar, reclama do gás que acabou no momento desgraçado e por aí vai. Mas sei também que ainda assim, estou entre os grandes afortunados do mundo que pode gozar de ter um teto, um meio de transporte, três refeições por dia, internet, luz, água... No entanto meus anseios são ambiciosos. Me falta o carro, o sítio pra passar o fim de semana, um celular que preste, as viagens que sempre ficam na cogitação e mais um sem fim de coisas.

No amor, ponto pra vida. Encontrei um amor suave daqueles que de tão próximo da perfeição, parece um sonho que eu não mereça viver. Na família em geral, mesma coisa. Sou filho de pais que seria impossível descrever nas mínimas coisas. Irmãs que sempre me defenderam, me ensinaram e acreditam até hoje em virtudes que supostamente eu tenha e no entanto, eu gostaria de acreditar que as tenho. Os amigos também eu soube escolher bem. Ou a vida fez isso por mim com perfeição. Então, mais um ponto pra ela.

Por fim, cheguei ao ponto da reflexão em que na verdade eu pretendia evitar: eu. Eu e a imagem que tenho de mim mesmo, em face do que fiz da vida em detrimento do que podia ter sido feito. Dos sonhos que tive e deixei que apodrecessem. Das tantas vezes que me recusei a estender a mão, outras tantas que mendiguei por socorro à almas questionáveis. O orgulho que eu tanto quis (quero) dar aos meus pais e, infelizmente, ainda hoje na meia idade, não posso lembrar um motivo se quer para tal. O livro que eu tanto quis um dia publicar, ainda não tive a inspiração ou mesmo a coragem de realmente tentar começar a escrever. Sempre postergando tudo com a desculpa de que tudo é nada. Deixando que o tempo me corrompa e se evapore diante dos meus olhos ofuscados pela certeza de que a hora "certa" chegará. Tantas mazelas e podridão vi em mim quanto veria em qualquer resto de gente que já passou pela terra. Olhar pra si mesmo é mais perigoso do que se imagina dependendo de qual tipo de visão você quer usar.

Despertei do pensamento com uma resposta feita, mesmo que não tivesse nenhuma certeza.

-Não! Sou mais medíocre do que imaginava ser. Sou um eterno insatisfeito embora nunca faça nada para mudar. Mas também não reclamo. O que é bastante estranho. Talvez por que eu seja afortunado em alguns aspectos, isso quase chega a equilibrar as contas. A vida fez bem a parte dela até então, eu é que não retribuí com nada. E isso abre uma lacuna que você acabou de me mostrar.

Ele riu e me desferiu mais um golpe.

-Se você morresse hoje? Provavelmente então não morreria feliz...

Confirmei com a cabeça.

-Mas também não faria diferença, já que você não faz nada pra sair da inércia. Certo?

Tive que pensar um pouco dessa vez. Mas tive novamente que concordar. Afinal, não fiz muito da vida, logo, não posso esperar muito, ou seja, ir ou ficar, no fundo, dá no mesmo. Fiz que sim com a cabeça. Mas não perdi a chance de alfinetar:

-Acho que você devia ler menos Nietzsche.

-E você, menos Augusto Cury.

Ele era bom. Embora houvesse anos que eu não lia um livro de autoajuda, entendi o que ele quis dizer; que não adiantaria nada o que eu dissesse ou fizesse. Ainda assim me senti tentado a devolver a pergunta.

-E você? Vai chorar o passado até quando? O que tens feito pra sair da inércia? O que tens feito pra mudar essa realidade que você diz não suportar mais? Não está sendo dramático de mais disfarçando o vitimismo com frases de efeito?

Ele então se soltou da grade subitamente.

-Se eu tivesse uma vida, com certeza ela me bastaria. Ou pelo menos eu faria de tudo para que me bastasse, e esse desafio por si só, já seria um motivo satisfatório para seguir. Mas eu morri há muito tempo, só o corpo ainda insistia em fazer peso na terra. Adeus amigo.

A última frase chegou gritada aos meus ouvidos quando me encostei no parapeito da grade da ponte e pude ver seu corpo viajando no ar com destino ao nada. Ainda teve tempo de atirar de volta para mim as moedas que eu havia lhe dado antes do início da nossa conversa.

Não tive tempo de agir. Pensei que fosse um blefe. Não era! Ele estava mesmo decidido.

Lá em baixo, o rio caudaloso seria sua derradeira morada.

No início da nossa conversa ele havia me contado pequenos trechos de sua miserável vida. Como o suicídio de sua mãe ao qual ele teve o desprazer de assistir, o alcoolismo de seu pai que também o levara à morte precoce. E isso tudo antes dos treze anos de idade. Falou sobre a vida na rua desde então, dos sonhos e amores que nunca teve. Os olhares de desprezo, os atos de desprezo, a luta pra comer os restos do mundo, os dias imundo, os dentes apodrecendo, olhares de piedade que nunca vinham junto com algum ato de compaixão. O mais próximo que chegava de se sentir humano era quando se dava ao luxo de ler os livros que achava nos lixos da cidade. Era uma vida a menos como tantas outras em que os corpos são fardos pra sociedade.

Transtornado, olhei as poucas coisas que o estranho que se jogou da ponte deixou pra trás: um cobertor surrado, um papelão mais surrado ainda. Uma sacola com latas de alumínio, um chapéu para esmolas com algumas moedas dentro e um livro em frangalhos que fiz questão de pegar. Era uma coletânea de poemas. Havia uma página rasgada, dobrada com jeito. Abri e não fiquei surpreso, alguma coisa me dizia qual poema estaria nela. Era Camões:

"Alma minha gentil, que te partiste,

Tão cedo dessa vida descontente

Repousa lá no céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste"

Foram apenas algumas horas de busca pelo corpo. Não foi encontrado. O jornal na manhã do outro dia noticiava a morte presumida de um mendigo sem nome que se jogou da ponte.

Passei acreditar que minha vida me basta. Muito mais do que mereço.

Paulinho Souza
Enviado por Paulinho Souza em 08/09/2019
Código do texto: T6740249
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