A VIDA DÁ MUITA VOLTA

Mariana saiu de casa, cedo como de costume, ia apanhar o autocarro para o trabalho, era temporário e por isso não podia dar-se ao luxo de o perder, era o seu único ganha-pão. Caminhou apressada, dado ter visto o seu transporte a aproximar-se rapidamente. Entrou na fila e depois sentou-se num lugar vago. O tempo, cinzento, ameaçava chuva. Apesar de ser algo vulnerável às variações de clima, sentia-se bem, tinha acabado o namoro com um cafajeste, alguém que quase a tinha seduzido, mas por não ter confiado nele, nunca chegaram a vias de facto. Agora era livre como um passarinho. E quase todos os dias fazia planos, mas a conclusão era sempre a mesma: o dinheiro era curto para os dias do mês, quanto mais para sonhar.

No trabalho, o tempo custou a passar. Por fim, às dezoito horas, chegou ao fim da jornada e apressou-se a sair daquela sala que a sufocava.

Dirigiu-se lentamente à paragem de autocarro para o regresso. Distraidamente, chocou com uma mulher que caminhava com a gola do casaco levantada, como que a esconder o rosto. Rapidamente Mariana reconheceu Irene, a sua antiga colega de escola, que já não via há tempo. Olhou-a mais fixamente e percebeu equimoses no rosto. A pergunta saltou, rápida:

- Alguém te bateu? – Viu as lágrimas a correr no rosto da amiga e confortou-a conforme pôde.

- Foi o Filipe, o meu companheiro…. É muito ciumento, controla toda a minha vida. O pouco dinheiro que ganho, o celular, tudo me foi tirado, até me proibiu de comprar roupa, ando sempre com os mesmos trastes.

- Tens filhos?

- Não.

- Então porque não o deixas?

- Ele já me bateu várias vezes, apresentei queixa às autoridades, nada fizeram e ele ameaçou que me matava…. Tenho medo que o faça…

Mariana reparou no rosto magro de Irene e perguntou-lhe:

- Tens fome? Não mintas…

- Ainda não comi nada hoje. Não tenho dinheiro, hoje de manhã gastei-o no supermercado a aviar a lista que ele fez, pouca coisa de comida, só vinho e cerveja...

Mariana fez mentalmente alguns cálculos pois o dinheiro também não abundava nos seus bolsos e depois decidiu-se:

- Anda ali tomar um suco de laranja e comer um croissant com queijo.

Irene deixou-se levar e depois de se sentarem e fazer o pedido, Mariana sorriu ao ver o ar satisfeito da amiga a comer o lanche.

- Não comes? – perguntou Irene.

- Não, comi há pouco… - mentiu Mariana.

Conversaram de forma mais descontraída e combinaram encontrar-se à mesma hora no dia seguinte, mas Irene frisou que só podia ser por uma hora no máximo. Tinha o tempo contado por imposição do companheiro.

No dia seguinte, à hora combinada, Irene não apareceu. Mariana ficou preocupada.

Não a viu durante uns dias até que, o acaso fez com que ela a visse com um indivíduo gordo que a segurava por um braço, como se a arrastasse em determinada direção.

Aproximou-se mais e pôde ver que Irene tinha o casaco rasgado e o rosto estava ainda mais marcado, roxo, do que da primeira vez que a vira.

Mariana ficou a tremer de raiva…. «Fdp, batia na Irene porque a sabia fraca, que tentasse com ela que aprenderia uma dura lição…».

Entretanto o par sumira por uma porta, tão rápido que nem reparara.

Dois dias depois, à saída do trabalho, Mariana postou-se numa esquina da rua, controlando todo o movimento de peões. Com muita sorte, viu Irene caminhando na direção dela, mas sem a ver. Trazia óculos escuros, um contrassenso pois já era quase noite e ameaçava cair uma forte chuvada. De repente, saiu-lhe ao caminho e Irene recuou surpreendida. Mariana levantou-lhe os óculos e pôde constatar as marcas de pancada que a amiga apanhara. Instantaneamente, lágrimas surgiram-lhe nos olhos e abraçou a amiga.

- Onde é que ele está?

- Deve estar a dormir, ficou esticado na cama após o almoço e é sempre assim, só se levanta à noite, janta e vai ter com os amigos ao bar.

- Está bem. – E resoluta, Mariana perguntou-lhe onde morava. Irene indicou o caminho, meio a tremer.

Na direção da casa de Irene, pararam numa loja de artigos desportivos e Mariana comprou um taco de basebol.

- Para que é isso? – perguntou Irene, temendo o pior.

- Já vais ver – respondeu a outra.

Subiram as escadas do velho prédio, a amiga morava no segundo andar, degraus desgastados por muitos anos de uso. Depois, Mariana pediu a chave à Irene e entraram as duas sem barulho.

Ouvia-se distintamente o ressonar de alguém, numa divisão ao fundo do corredor.

Entreabriram a porta e viram o corpo do homem que já vira com Irene, dormindo a sono solto.

Mariana chegou-se à cama e empunhando o taco, bateu no homem com toda a força, distribuindo as pancadas de forma a provocar os maiores danos possíveis.

Ele acordou com as dores e gritou: - O que é isto? – E tentou levantar-se, mas uma forte pancada na cabeça fê-lo cair para trás, sobre a cama… Às tantas, como Mariana não parava de bater, ele começou a chorar, pois as dores eram insuportáveis. O rosto estava cheio de sangue e a coberta da cama ensopada do mesmo.

- Cabrão, agora não tens vontade de bater? Eu não sou a Irene!

Às tantas, exausta, Mariana parou. Ele não se mexia, mas estava a respirar pesadamente. Irene chorava baixinho.

- Agora é que ele me vai matar…

- Não acredito… - E levantando mais uma vez o taco, bateu com toda a força nas duas mãos do outro. O ruído de ossos a quebrar foi bem audível e ele apenas soltou um gemido, depois desmaiou.

- Irene, pega numa mala de viagem, tens ali duas, bem vejo, e mete lá toda a roupa que couber. Não podes continuar aqui. Mas não tenhas medo pois ele, cobarde como são todos os da laia dele, não irá atrás de ti. Possivelmente vai arranjar outra desgraçada que o sustente, mas esta tareia vai ficar-lhe inesquecível.

A outra, meio perdida, obedeceu e saíram do prédio. Mariana levou-a até sua casa e pegou numa mala onde antecipadamente tinha colocado alguns pertences. Tudo fora planeado, por isso agia de forma tão determinada.

Dirigiram-se à estação de comboios e Mariana comprou bilhetes para uma localidade bem longe dali.

Irene inquiriu-a: - Para onde vamos? Tens dinheiro? Eu não tenho.

Mariana tranquilizou-a: - Não te preocupes, havemos de nos virar…

Nota do autor: Este ano, em Portugal, já foram assassinadas onze mulheres e apresentadas cerca de 34 600 queixas por violência doméstica. Destas apenas nove tiveram como vítimas homens.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 05/09/2019
Reeditado em 05/09/2019
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