Conto das terças-feiras – O Réveillon que não aconteceu
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 3 de setembro de 2019
Na década de 1950, o réveillon, tradicional comemoração pela passagem de ano, era festejado nas residências. Reunia-se a família cujos membros, ansiosos, esperavam a ceia, sempre servida antes da meia-noite de 31 de dezembro. Na ocasião eram trocados abraços, beijos e votos de feliz ano novo. Noite de muita alegria e comilança.
Na residência dos Cardosos, esse ritual era costumeiramente realizado na casa do chefe do clã. Seu Otávio Cardoso, o mais entusiasmado por essas festas, dias antes procurava abastecer a sua despensa com frutas, doces, biscoitos e guloseimas outras. Eram para os netos, os filhos, noras e genros, os queijos, pães, as carnes, e as bebidas, para as mulheres vinho rosé doce, para os homens vinho tinto e branco, para atender às diferentes preferências. Dona Luizinha Cardoso se esmerava na confecção dos pratos, tendo como coadjuvante sua fiel empregada, cozinheira de mão cheia e vivendo há mais de quarenta anos com os Cardosos.
Nesse dia nada podia faltar, era o único em que conseguiam reunir toda a família: cinco filhos, duas filhas, três noras, dois genros e quatorze netos. Alguns amigos do seu Otávio apareciam de surpresa. A casa ficava cheia e alegre, principalmente pela presença dos netos, que recebiam inofensivos fogos de artifício, bombinhas e estrelinhas, para soltá-los na passagem do ano. O chefe da casa era o responsável para soltar os rojões, que pipocavam no ar, anunciando o novo ano.
Antes do início da ceia, o Senhor Otávio recebeu a triste notícia que o peru, iguaria que não poderia faltar em sua festa, fora esquecido no forno do fogão e queimara totalmente. Muito aborrecido dirigiu-se à cozinha para certificar-se do acontecido. Bastante chateado, convocou o genro Germano, para irem comprar, pelo menos, duas galinhas assadas. Os dois partiram para essa empreitada exatamente uma hora antes do início da ceia. Não houve aviso do ocorrido, aos demais participantes daquela noite tão agradável e divertida.
A espera pelas galinhas assadas ultrapassou a meia-noite. Todos começaram a ficar preocupados. A ceia não chegava à mesa, as crianças não soltavam suas bombinhas e o Senhor Otávio não estava lá para soltar os rojões. As crianças choravam de fome, os adultos bebericavam suas bebidas preferidas, reclamando da demora da ceia. Foi aí que notaram a falta do dono da casa e do genro Germano. O tempo transcorria e nada dos dois aparecerem.
Já passava das três horas da manhã, quando um automóvel do Posto Vitória parou em frente à casa dos Cardosos, trazendo o anfitrião e seu genro. Desalinhados e um pouco alterados pelo efeito do álcool que haviam bebido, os dois não conseguiam explicar à Dona Luizinha, o que acontecera. A argúcia da esposa do Senhor Otávio a fez se voltar para o motorista do carro, que ainda esperava receber o dinheiro da corrida. Por ele, ela ficou sabendo que os dois foram apanhados em frente ao bordel de Lindalva, localizado na beira-mar, que naquela noite também comemorava a passagem do ano com uma concorrida festa.
O tempo fechou, o casal que nunca brigava começou uma discussão ferrenha. Na verdade, só quem falava era a mulher, que raivosa soltava até impropérios. O homem, sem condições de racionar, permanecia calado.
A senhora então partiu para cima do genro, colocando a culpa sobre ele. A filha, esposa do Germano foi em sua defesa, esclarecendo que o marido nunca bebera na vida. O pai, sim, era acostumado e ela sabia que ele frequentava esses lugares. Nunca dissera para a mãe por motivos óbvios, não queria acabar o casamento dos dois.
Abatida, Dona Luizinha solicitou que todos fossem para as suas casas, e quem estivesse com fome era só levar o que ainda não havia sido servido. E fez uma declaração: a partir daquela data não haveria mais réveillon em sua casa, que cada qual comemorasse à sua maneira. A partir daquele dia, todos da família Cardoso passaram a comemorar a passagem do ano em suas residências, clubes ou restaurantes. Visível era o abatimento do Senhor Otávio Cardoso, nessas datas. Recolhia-se cedo para não ouvir os estampidos dos fogos de artifício e nem as algazarras provocadas pelas crianças, na calçada de sua rua.