CONTINGÊNCIA OLFATIVA*

O sol denunciava-se cedo, pelas frestas da janela de madeira, manhã de setembro. Aquele hálito tépido no rosto trazia João de seu sono pesado, cansado, mal recuperado de mais um dia de labuta exaustiva. Abriu os olhos semicerrados, e, num átimo, como quem está sempre correndo atrás do tempo, levantou-se apressado... Tudo iniciaria novamente, a batalha de um outro dia, que não considerava novo, para ele uma repetição do anterior, sem novidades e tréguas, mal agradecendo a benção de estar vivo, embora, na infância , católico, tenha sido até coroinha da paróquia da esquecida cidadela de onde viera, cheio de sonhos e ilusões, para o anonimato das multidões paulistas, espremido por um lugar no coletivo... A roupa mal passada, a cara macerada de sono desconfortável, o agir feito um autômato vestindo-se. Decidira que não disputaria o banheiro coletivo para um banho rápido, sempre de esperas imprevisíveis, lamentando não ter feito isso na noite anterior, passou um desodorante nas axílas, examinando se cheirava algum odor de suor, a economia dessa medida o colocaria em vantagem no ponto de ônibus, alguns minutos a mais para chegar ao seu destino. Esquentou um café amanhecido com um gole de água, havia umas batatas doces cozidas no dia anterior que substituíram os brioches de alguma mesa mais afortunada que a dele, bastava, contudo, para satisfazer um estômago exigente de alguma coisa e não dado a caprichos com requintes. Sentia-se felizardo pela conquista de um lugar sentado no ônibus, coisa não habitual, recompensado por não ter-se demorado em um necessário e higiênico banho. Pela janela, desatento, quase sonolento, observava as imagens do dia se revelando, vidas em movimento, seres caminhantes em seus destinos, contemporâneos em anseios, dúvidas, viventes do mesmo tempo, pessoas em busca de alguma coisa, imersas em seus mundos, a fazer sentido na roda da existência. Havia pouco dias conquistara uma vaga em uma empresa de médio porte, seria um “faz-tudo”, de carregador de materiais, estoquista, até mesmo da faxina se fosse requisitado. O importante era o emprego fixo, com carteira assinada e algumas garantias asseguradas. Antes penara em trabalhos eventuais e braçais, sem continuidade, até mesmo na construção civil como ajudante de obras,lembrando os parentes que eram trabalhadores das lavouras em tempos de colheitas, sujeitos à sazonalidade dos plantios, e à insegurança. Até que, para os padrões, em tempos melhores, poderia ter ambicionado um outro cargo, melhor remunerado, tinha o segundo grau completo, falava bem, evitava gírias, não se permitia tatuagens e adereços como piercings e brincos, tão comuns em sua faixa etária. Portava apenas um relógio para orientar-se em sua rotina. Sentia-se um jovem /velho prematuramente responsável por si mesmo, talvez por suas raízes de vivência interiorana e morador da zona rural. Aportara na megalópole,como tantos migrantes neste país continental e diverso , atrás de um lugar ao sol, que não fosse o causticante de cortador de cana ou nas colheitas de algodão, café e de laranjas. Apesar de restrito e solitário no almoxarifado, aguardando ordens, no mais das vezes, aquilo era confortável se comparado às experiências anteriores. Cultivara um hábito salutar, adquirido na pequena escola rural de pau a pique, trazia sempre um livro, mesmo de bolso, e, em momentos esporádicos, se entretinha em leituras, colecionava adjetivos, fascinava-se por novas palavras, mesmo que não as usasse como gostaria, mas isso o fazia mais atento em conversas refinadas ouvidas, discernia os assuntos, sentia-se destacado e admirado quando ouvido por alguém, como na entrevista de emprego. Emprego simples, de pouca qualificação, mas sua redação quase o traíra, pois a entrevistadora detectou seu talento , não poderia admitir um candidato tão expressivo em sua manifestação escrita; teve que implorar pela oportunidade, chinfrim que fosse, com receio de ser descartado para a função, por apresentar qualidades superiores, intelectualmente, ao requisitado. O fato é que não tinha outra vaga na empresa, aquilo servia a ele naquela circunstância, embora a selecionadora o visse como mais preparado , foi necessário insistir com ela. Vencê-la na argumentação de que era pouco para ele, e que deixaria o emprego na primeira oportunidade que lhe aparecesse. Estranho era ter mais do que requisitavam e ser excluído por isso. Tinha um dicionário velho, adquirido em um sebo, na escrivaninha improvisada em meio aos utensílios de trabalho, e um caderno de anotações com as palavras garimpadas nas estórias lidas. A leitura também o elevava além da mesmice medíocre e o permitia sonhar com outros cenários, utópicos que fossem. Por vezes pensava em rascunhar alguma coisa, escrever sobre si mesmo e sobre os outros pelo filtro de suas sutis observações , infelizmente sempre postergando, vencido pelas horas suprimidas de seu cotidiano. Entretinha-se com as imagens visualizadas pelo ritmo lento do coletivo, de paradas e de partidas. Nem notara que o assento ao lado, ocupado até então por um senhor, dera lugar a uma jovem, cabelos encaracolados e cheio, aroma suave de seu perfume e corpo rescendendo o frescor de um banho recente, na tez morena, salientada por um vestido leve, de alças, desnudando seus ombros delicados. Instintivamente apurou o olfato denunciando-se como quem se policiava cheirando os próprios sovacos, o que não passou despercebido pela vizinha de viagem. Tirando-o de seu universo pessoal, uma pergunta a ele dirigida, o despertou. - ¬ Acho que exagerei no perfume , desculpe ! Instou a jovem ao seu lado. Olharam-se, ele receoso de seus possíveis odores negligenciados com a higiene, e ela, como se o incomodasse com seu aroma perfumado. Como responder sem denunciar-se como negligente consigo mesmo sem banhar-se a uma estranha ? Penitenciou-se por ter adormecido frente à televisão , esperando a fila de seus vizinhos , ávidos para o mesmo fim, e ter ido sem banho, temendo o atraso em período de experiência, o corpo parecia acusá-lo e cobrá-lo com coceiras, a atormentá-lo durante todo o expediente. Trabalho manual, carregando coisas em carrinhos pesados, inevitáveis as transpirações. Preferiu o silêncio e a resposta pelo olhar, parece que compreendido por ela, a acomodar-se melhor na poltrona, entretida com seu celular.

Foi no meio do expediente que fora requisitado no terceiro andar, vencendo lances de uma escada, atendeu o chamado. E, para surpresa de ambos, eram colegas de trabalho. Ela como uma das auxiliares de escritório, eram duas. E ele, o de serviços gerais, no sub-solo, com uma escada de alumínio para trocar uma lâmpada. Olharam-se surpresos, cumprimentaram-se pelos olhares, a perfumada e o sem banho, fatos lembrados gostosamente tempos depois de se conhecerem e rirem –se daquilo, mais íntimos e amigos. No refeitório romperam o mutismo dos dois, sentando-se com o bandejão lado a lado, sempre ela se avizinhando dele, por coincidência, possivelmente.

Passaram a disputar juntos o coletivo no final de cada dia, por vezes ele cedendo o lugar a ela no ônibus apinhado, que então carregava no colo sua pequena sacola com o macacão de serviço, que gentilmente passou a levar para a casa e lavá-lo visto ter onde secá-lo em seu quintal, e sempre o livro, seu fiel companheiro. Tinham o mesmo destino na ida, e desciam em locais diferentes no retorno. Ele em um bairro central, em casa de cômodos, cortiço, onde alugara um quarto que era também sua cozinha, com o banheiro coletivo disputado pelos moradores a desaforos a cada manhã ou noites; ela, moradora com os pais em um bairro da periferia, mais distante. Eram de origem humilde, não havia constrangimentos entre eles, sabiam-se lutadores em ringues onde as esperanças nutriam forças de dias melhores na batalha cotidiana, a dela estendida pela freqüência em um curso supletivo noturno, onde não raro cochilava nas aulas. extenuada pelo cansaço de levantar tão cedo.

A rotina dos inevitáveis encontros, os aproximou além de colegas de trabalho e de mesma condução diária, já faziam pequenos passeios juntos aos finais de semana e feriados, unidos na solidão de jovens pobres, apaixonaram-se , e passaram a dividir uma casinha juntos, com banheiro privativo nos arrabaldes, mutuamente se ajudando. Enfim, as leituras tiveram serventia prática, e ele as usava para auxiliá-la na conclusão dos estudos. Afinal estavam na mesma estrada, povoada de sonhos e de árduos e meritórios avanços, unidos e se fortalecendo na caminhada, deixando seus mundos se penetrarem e compartilharem a mesma jornada.

Com a cabeça enevoada de shampoo, lembrando que Já era passado a disputa por uma vaga no banheiro coletivo, pequeno e expressivo sucesso. Ria-se ao demorar-se um pouco mais sob o chuveiro com água morna e reconfortante, sem receios das queixas dos apressados, ou do risco de sentir-se sujo pela ausência de um banho, causa do início de sua vivência com a companheira, a quem agradecia o incidente e as mudanças em sua trajetória. Isso o remetia à reflexão da necessidade de observar os pequenos passos e agradecer as conquistas, simples que sejam...

* Publicado em livro na Antologia de contos " E AI, COMO FICAMOS ?", Editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ, outubro de 2019.