Conto das terças-feiras – A casa do morto vivo
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 27 de agosto de 2019
Povoado pacato, povo ordeiro, isento de novidades, pois nada ali acontecia de extraordinário. Somente o latir dos cachorros abandonados pelas ruas e, principalmente o som dos carros de boi, que resistiam à modernidade dos veículos de duas ou quatro rodas, desassossegavam os moradores locais. Conhecidos desde à época dos antigos egípcios, passando pelos babilônios, hindus, hebreus e fenícios, essa modalidade de transporte “via bois”, veio para o Brasil trazido pelo português Tomé de Sousa, nosso primeiro governador-geral, para uso na nascente indústria açucareira, durante os primeiros anos da colonização. Ainda hoje, em algumas cidades brasileiras o carro de boi é utilizado como transporte corriqueiro ou em dias de festas folclóricas.
Mas o que eu quero falar mesmo é sobre a perturbação, que tirou a paz do povoado, causada pela morte de Francisco Jeremias, o carreiro mais famoso da redondeza, pois fazia seu trabalho de conduzir o carro de boi, com maestria.
Ainda jovem, trinta e seis anos, forte que nem uma mula, como diziam seus amigos, faleceu subitamente quando se preparava para mais uma labuta, transportar pessoas e mudanças para a sede do município. Uma dor muito forte que o fez cair ao lado do carro, desfalecido, sendo acudido pelo amigo e companheiro de jornada, Raimundo da Santinha, o candeeiro, o responsável por conduzir os bois guias, a pé, ditando o rumo do carro e controlando sua velocidade.
— Chega “pessoar”, o “Jerimia” tá morrendo, acudam! – Gritava o candeeiro.
Ruma de gente apareceu nas portas das casas vizinhas. Opiniões eram dadas a todo instante: bota ele dentro da casa! Leva ele para a cidade, corre! Já não tem mais jeito – falou um pessimista.
Dona Mariazinha – chamada assim pela sua baixa estatura – saiu correndo de casa aos prantos:
— Meu Jejé, o que aconteceu? – Perguntava ela, desesperada. “Vamo” leva prá cidade, ligeiro, gritou Mariazinha a plenos pulmões.
Atendendo à ordem da mulher, Raimundo da Santinha, ajudado por mais curiosos, colocou o amigo no carro de boi, que ainda não estava carregado, Mariazinha se acomodou ao lado do marido. Dois ou três amigos se juntaram ao lado do corpo do carreiro, e rumaram para a sede do município, à procura de um hospital, eram só dez quilômetros, com previsão de chegada depois de quase duas horas de viagem. A sorte é que eles encontraram, na estrada, uma camionete que os levou em menos de quinze minutos. Os outros continuaram no carro de boi. Chegando ao hospital, o atendimento foi rápido, com a constatação de morte por infarto fulminante. O proprietário da camionete se prontificou a levá-los de volta ao povoado, para que eles procedessem ao velório.
Ao chegar em casa, os preparativos para o funeral foram acelerados e o corpo, coberto com um lençol branco, foi colocado sobre uma mesa, enquanto esperavam a chegada do caixão, já encomendado na loja ao lado do hospital. Os vizinhos e amigos começaram a chegar e consternados, lamentavam o ocorrido. Alguns choravam, o morto era gente boa, ajudava todo mundo! Ele não parece morto, parece dormindo! - Falavam.
Com a chegada do caixão, o corpo foi vestido com a sua melhor roupa, um surrado paletó e gravata, também velha, e acomodado no ataúde. Um véu foi colocado sobre a sua cabeça, flores campestres espalhadas ao redor do morto, alguns objetos pessoais, como fotos, um relógio velho, sem funcionar, que havia sido de seu avô, seu pente, uma pequena bíblia e sua aliança, ritual corriqueiro na comunidade. Alguém falou alto:
— Vamos começar as orações, o morto precisa.
Todos se calaram e uma senhora bastante idosa, de véu na cabeça e terço na mão puxou uma Ave Maria, todos acompanharam. De repente ouviu-se o som do carro de boi, que iniciara sua volta depois que a camionete havia levado o corpo para o hospital. Som inicialmente distante, que aumentava à medida que se aproximava da casa do morto, arrepiava a todos. Alguns se entreolhavam e uma sensação angustiante tomou conta dos presentes. O som invadiu a casa onde estava sendo realizado o velório, o pranto aumentou, algumas pessoas se afastaram da sala, foram para o quintal, outros para a rua, ver a chegada do meio de transporte que Jeremias tanto gostava, a parelha de bois fortes e bem nutridos, coisa que Jejé se orgulhava.
O som alto despertou até o defunto, que soltando um assombroso urro, se pôs sentado dentro do caixão. Todos se assustaram, um velho enfermeiro aposentado pediu calma e perguntou:
— O homem é cataléptico? - A resposta da esposa saiu de imediato
-— Não! Não! - Muitos dos ali presentes fugiram ao ver aquela cena. Um morto renascer! - Exclamou um mais exaltado.
— Então, voltem todos para o velório, foi apenas um espasmo, contração involuntária, não ritmada, de um ou vários músculos. Isso acontece, concluiu o enfermeiro aposentado.
Os que saíram correndo daquela casa nunca mais voltaram e ela passou a ser chamada a “casa do morto-vivo”.