O Porteiro

Era uma vez o porteiro de um condomínio que se chamava Xavier (o porteiro, não o condomínio: o nome do condomínio não faz diferença para nossa história).

Pois bem, o porteiro Xavier vivia com o desodorante vencido e se achava muito educado, praticamente um lorde inglês, apenas pelo fato de ficar dando "Bom dia!", "Boa tarde!" e "Boa noite!" pra todo mundo que entrava ou saía daquela desgraça de lugar. Só não dava "Boa Madrugada!" pelo fato do portão ficar fechado nesse horário, além do que ele ia cedo dormir no seu muquifo xexelento e abafado, afinal, Deus ajuda quem cedo madruga, e ele acordava antes das cinco da manhã todos os dias, exceto aos domingos. Nem todos os moradores do condomínio (você sabe qual) respondiam aos cumprimentos do porteiro: alguns só resmungavam alguma coisa de volta, outros faziam que sim com a cabeça, alguns ignoravam de propósito e outros ignoravam sem querer, pois estavam com suas fuças enfiadas em seus celulares xing ling, provavelmente vendo nudes de gente feia com rostos sofridos (quando o rosto aparecia), mas agraciada com uma grande autoestima. De toda essa gama de personagens bizarros e esdrúxulos que passavam por ali todos os dias, o único que irritava o porteiro Xavier era o Seu Alceste, um velho magrelo e enrugado que sempre devolvia seus cumprimentos com alguma ofensa - algumas cabeludas demais para serem publicadas aqui. Exemplos:

- Bom dia pro Sr.!

- Bom dia o caralho, vai tomar no seu cu!

- Boa tarde!

- Só se for boa pra você, seu merda, tomara que você morra!

- Boa noite!

- Vai dar boa noite pra ****** da sua mãe, aquela **** ********* do ******* que vive ***** o ** lá na **** e é conhecida por **** **********, seu bosta!

Era daí pra baixo. Xavier, o porteiro, já tinha investigado toda a vida do Seu Alceste e descobriu que antes de se aposentar ele era pedreiro e tinha ganho seu imóvel no condomínio (você sabe qual) como herança quando seu filho, nora e netos morreram num misterioso acidente automobilístico onde as crianças foram degoladas e todos os ocupantes do carro arderam em chamas até virarem algo parecido com um bloco disforme de grafite, com um dentinho ou outro aparecendo aqui e ali.

Um belo dia, Zuleide, a faxineira fofoqueira que era mãe de uma penca de filhos (nem todos do mesmo pai, embora o “pai” não soubesse - o que no fim das contas, tal qual o nome do condomínio, não importava - afinal, pai é quem cria) deu a entender, durante uma conversa com o porteiro Xavier, que os dias dele ali estavam contados: tinham pego ele fazendo algo de errado na câmera de segurança e só estavam esperando o outro porteiro, Ivair, voltar das férias para correrem com ele dali.

Por várias noites Xavier ficou se martirizando, tentando descobrir o que diabos a maldita câmera tinha pego ele fazendo de errado. Teria sido o dia em que ele cagou na moita? Ou foi quando espancou o cachorro com um cabo de vassoura? Pior ainda: será que tinham visto o dia dos travecos? O que quer que fosse, na cabeça dele, não era motivo pra mandarem ele embora, justo ele, um bom funcionário que qualquer empresa se orgulharia em ter em seu quadro, muito educado, que dava “Bom dia!”, “Boa tarde!” e “Boa noite!” pra todo mundo e ainda passava uma vassourinha quando via que a coisa estava muito feia. Mas, já que ia sair, resolveu que sairia por cima: para mostrar a todos sua dura vida como porteiro ali, decidiu fazer uma live em suas redes sociais para todos os seus quase oito seguidores mostrando a falta de educação do Seu Alceste, aquele velho desgraçado.

Comentou com algumas poucas pessoas seu genial plano de vingança, e como Seu Alceste passava por ele sempre nos mesmos horários, não foi difícil deixar todos os celulares que conseguiu emprestados posicionados e logados em todas as suas redes sociais simultaneamente, transmitindo ao vivo. Quando ele percebeu a aproximação do alvo, fez uma breve introdução explicando que queria registar o “bilíngue” que sofria daquele morador. Estava realmente muito excitado com a situação, mas para sua surpresa, naquele dia, ao desejar uma boa tarde pro Seu Alceste, o mesmo se aproximou e disse:

- Boa tarde, meu filho! Olha, eu trouxe aqui pra você um pãozinho de queijo. Tem café aí, né? Bom apetite, se alimente direitinho, viu?!?! E que Deus, em sua infinita bondade, abençoe grandemente o restante do seu dia e proteja sua noite! Boa tarde!

Xavier ficou sem reação, estupefado, a cor de seu rosto saiu de um branco marmóreo até ficar vermelho feito um peru. Seu Alceste já tinha desaparecido da sua vista quando lembrou de desligar os celulares, que transmitiram tudo ao vivo. O pior foi que alguém compartilhou, e outra pessoa compartilhou o compartilhamento e alguém deu um jeito de salvar a transmissão, e foi indo assim por diante até que o vídeo viralizou e todos no país, quiçá no mundo, viraram fãs do Vovô Alceste!

POR MAIS GENTE ASSIM!

O MUNDO NÃO ESTÁ PERDIDO!

O MELHOR VÍDEO QUE VOCÊ VAI VER HOJE!

O que o porteiro Xavier não contava era que aquela biscate da Zuleide, a faxineira, contou todo seu plano para o Seu Alceste, que teve tempo de sobra para planejar seu contra ataque certeiro.

Naquela mesma noite, Xavier foi dormir pensando que nem tudo estava perdido: ele tinha alguns contatos, fez algumas ligações e já estava praticamente certo que saindo do emprego como porteiro, finalmente iria realizar seu sonho de ser cobrador de ônibus. Mas Xavier não acordou na manhã seguinte. Seu corpo foi encontrado todo cagado, mijado e vomitado, já sem vida no muquifo, quando foram verificar por qual razão ele estava mais atrasado do que de costume. Uma morte por causas misteriosas - provavelmente devida a ingerir remédios de tarja preta com bebidas alcoólicas, mas que jamais seria totalmente desvendada pois o IML estava em greve, cheio de defuntos apodrecendo nús e empilhados pelos corredores.

No velório do porteiro Xavier, muitas pessoas estavam reunidas - inclusive Seu Alceste, que chorava copiosamente.

- Será que foi droga?

- Tadinho, tão novo...

- Judiação, descansou.

- Era uma pessoa linda por dentro e por fora.

- Será que a família tá sabendo?

- Parece que tá sorrindo.

Ao lado do caixão, Zuleide aconselhava Grozelva, a faxineira mais nova, a tomar água morna com limão ainda em jejum, todas as manhãs, para emagrecer e curar a diabetes. Ela já nem se lembrava mais que tinha inventado a história da câmera de segurança para Xavier pois vivia fazendo isso com todo mundo, pra ficarem espertos, afinal tá difícil arrumar emprego hoje em dia. Do lado de fora, seus filhos faziam a maior algazarra com outras crianças. Um deles, o Whanderlley (com H depois do "drábio", dois L's e Y no fim), era a cara do porteiro Xavier.

FIM

Betaldi
Enviado por Betaldi em 25/08/2019
Reeditado em 13/08/2020
Código do texto: T6728852
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