SETEMBRO
Em Setembro ele descia até à praia ao fim da tarde e pensava no desejo de escrever uma espécie de autobiografia.Para medir a sua vida.Compreendê-la melhor e aceitá-la.
Tinha assistido a muito.O Estado Novo.A invasão do Império.A guerra colonial.A emigração clandestina.A ditadura do Kremlin.A guerra fria!O assassinato de Kennedy.O suicídio de Marilyn.O início do colapso da civilização ocidental.
- O senhor deseja alguma coisa?
- Um cocktail frutado.Pode trazer a lista?
A escola nos dias cinzentos.A ruína da família.Um pai e mãe desfeitos e dasapaixonados.Uma falsa protecção sem armas para lutar.Momentos duros e experiências rudes.Horas e dias inteiros para esquecer e afundar no esquecimento.
Tequila ou whisky misturado.No mar o reflexo de centenas de personagens, a maior parte – diga-se – sem relevo nem história.Apenas gente a lutar pela sobrevivência em contextos tão diversos e incomuns com quem ele tropeçara e fora obrigado a lidar e defender-se.
- Pode ser este.Com muito gelo.E num copo de plástico descartável.Gostaria de caminhar um pouco.
A queda do Muro.O fim do Comunismo.O reacender das rivalidades .Constantes que Hegel e Marx equacionaram.
Pensou com ternura nos livros e nos filmes e nos espectáculos e na música – “Ao menos um pouco de beleza diminuta e de vez em quando”.Magia e extâse em doses parcimoniosas.
As viagens.Madrid, Sevilha, Roma e Nápoles, Paris e Londres, Genéve e Colónia, Varsóvia e Bruxelas.Nova Yorque, Atlanta, Ponta Delgada, Funchal, Praia, Mindelo, Luanda, Maputo.Todo o mundo e ninguém.
- Boa tarde! – saúda um estranho com que ele se cruza, talvez com o mesmo gosto pelo entardecer, pelo crepúsculo em sangue, o vento norte e o horizonte em fogo.Um desconhecido, um vulto na paisagem.
E a memória e o pensamento iam e vinham como as marés que se advinhavam no mar aparentemente calmo a seu lado.
O pai tinha sido um homem pouco culto mas muito truculento.Ambas as avós tinham morrido de medo.A mãe tinha atravessado a demência antes da morte.A mulher sofria de bipolaridade.A vida das pessoas engana e por vezes parece que uma tragédia infinita assola e ensombra os nossos dias.
O ar começava a esfriar e ele encolheu-se no blusão.A Natureza manifestava-se, sorria, ia-se despir como uma pessoa e recolher-se.
Para ele em Setembro as páginas eram viradas, a semente germinava, era um recomeço, um regresso, uma vida nova.Estreavam-se novos filmes e saíam novas canções.
Uma ventania começou a soprar e ele estancou.
- Vou voltar para trás.Chega!
Um casal de mulheres passou ao largo, enlaçadas e felizes.
Ele sentiu que estava desiludido demais, bastante deprimido, talvez neurótico mas rejeitou esse pacote.
A lua espreitou num canto em quarto minguante e ele voltou a passar pelo bar, dirigiu-se ao parque de estacionamento e procurou o carro.
Ao volante, endureceu o rosto, ligou o motor e arrancou na noite.