Cotidiano

– Droga!

Ele olhou o relógio e já era 05:30. Iria se atrasar novamente. Madrugadas insones, regadas a vodka e tintas. Ser um artista é o que ele é. Não dá para viver sem arte. Infelizmente, não paga suas contas. Por isso, ele pega dois ônibus para ir e dois para voltar de um trabalho que não é ruim, mas não é o que imaginou que estaria fazendo da vida. Todo mundo que ama arte gostaria de viver dela, todavia, nem sempre é possível e você precisa encarar a realidade de ser um adulto.

Tomou um banho rápido e saiu apressado do pequeno apartamento que divide com um amigo, que trabalha como barman. Assim, eles quase não se veem: um trabalha de dia e o outro de noite. É um bom acordo, já que não daria para pagar um apê sozinho, com um salário que não atende nem metade de uma vida digna (qual trabalhador consegue viver com um salário mínimo?).

Andando até o ponto de ônibus, com seus fones de ouvido, ele pensa quando terá um tempo livre para ir até o parque, expor os seus quadros, e quem sabe, ter inspiração para fazer algo inovador, que renove sua esperança nesse mundo marginal.

O ônibus não demora muito e ele se mistura a um mar de pessoas que parecem tão tristes com sua realidade quanto ele (mas quem exala felicidade antes das seis da manhã, se deslocando para o trabalho – que muitas vezes não é o que queremos, porém, dar para pagar as contas e ter esperança que no futuro vai melhorar). Todo mundo parece estar em sua bolha particular, pensando como fazer para não surtar antes do fim do dia, se trancou a porta de casa, se pagou a conta de água ou luz, se as crianças não vão ter crise de asma de novo, se vai voltar para casa vivo (infelizmente a violência cresce assustadoramente como a fumaça que contamina o ar, e nem vemos mais).

Em pé, no ônibus, ele, também preso em sua bolha particular, pensa em suas escolhas de vida, nas contas que tem que pagar, se tem dinheiro para pagar as passagens de volta, se devolveu o livro da biblioteca, se fez o trabalho que o professor chato passou a duas semanas. Ele se pega pensando no amor. Na sua vida cotidiana, parece não haver tempo ou interesse em buscar a sua cara metade. Isso é triste. A modernidade nos aprisiona em bolhas e mais bolhas em que precisamos trabalhar mais, ganhar mais, consumir mais, mas amar menos, pois não há tempo para investir em uma relação.

No ônibus, secretamente ele queria que o amor da sua vida surgisse no assento da frente, com uma luz indicando que era ela. Talvez ele seja romântico demais ou só muito preguiçoso, mesmo. O amor da sua vida não aparece assim.

A sua primeira parada se aproxima e ele precisa saltar e correr até o próximo ônibus. O amor da sua vida precisa esperar para ser encontrado amanhã, ou talvez nas próximas férias. Hoje ele só não quer perder o ônibus e levar uma bronca do patrão.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 24/08/2019
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