JOHN E O MARQUÊS
Quando regressava do turno, exausto e esgotado deparou-se com aquela estranha figura imponente e diminuta, um lorde, altivo e sereno que o observava do alto como que a perguntar:
- Então?Não me ofereces nada?
-Ah!Pode estar com fome!Macacos me mordam!Esperai um pouco “Alteza” que já volto.
E sorriu a sua Senhoria que o olhou impassível e imperturbado.
Ele suspirou, voltou a sair e lá encontrou uma loja aberta.Improvisou uma mesa no meio do cimento, serviu-o num dos pratos de loiça sem esquecer uma grande taça com água.E o Marquês então dignou-se a descer, percorrer o terraço e atirar-se ao repasto sem mais nem menos.
E John pensou, enquanto, quase de cócoras, observava o auto convidado.
- Surpreendente!Fascinante!Tomara eu ser como ele.Estar-me nas tintas.Viver a minha vida e esperar que um tôlo me servisse.
E sem querer soltou uma gargalhada bem disposta e o cansaço como que por magia pareceu dissipar-se e esvair-se por um instante.
Não resistiu e tirou uma foto à Excelência que saciado lhe deitou um olhar complacente e desatou a ronronar consolado.Depois como que subitamente enfadado, saltou o muro e desapareceu no crepúsculo que se abatera na cidade.
John voltou para dentro de casa, ligou a televisão sem ver e sentou-se no sofá absorto.E passou a mão pela testa e pelo rosto, sentindo as rugas e as cicatrizes no corpo e na alma.
Os seus pensamentos e memórias voaram para muito longe, muitos anos antes para o país da sua infância e adolescência, pouco à vontade.
O restaurante onde a mãe recebia os artistas em tournée.Os espectáculos sempre muito concorridos e o prazer e a novidade de falar com o Rui de Carvalho, a Laura Alves e outros actores que lá iam comer antes ou depois das sessões.Simpáticos e amigáveis.
Luanda com a sua baía deslumbrante, o seu estilo , a sua animação e boa vida antes da guerra.Uma terra que produzia três vezes por ano, uma fertilidade rara e nunca vista.Colónia rica.
A luta pela independência.As minas.O horror.O alistamento.A tropa.Os anos da desgraça.
Tivera que deixar tudo o que possuía e ir-se embora.Para Moçambique.E aí conhecera Samora.Privara com um novo mundo em reconstrução.Vira um pouco de tudo.Viajara.Aprendera que os homens destroiem e se destroiem sem dó nem piedade.Cuba, Maputo, as ruinas do Império.
Mas mantivera incólume um tesouro que nunca deixara saquear.A admiração pelas coisas belas ,o gosto pela cultura que os olhos de menino tinham captado e guardado no seu coração partido.Uma vida de zíngaro cheia de vicissitudes, separações, encontros fortuitos, pescarias, festas, desilusões e um navegar austero por um oceano de solidão.Até voltar a Portugal e por cá fixar-se no Norte.Na Cidade Invicta onde o rio passava rápido pelo quotidiano das pessoas.Sempre atarefadas, com pressa e deprimidas.
Acabou por adormecer sem se dar conta e na manhã seguinte encarou novamente mais um dia e uma rotina de trabalho.Garantir a segurança de uma unidade produtiva, de uma universidade, de um complexo, dependia.
E qual não foi o espanto quando ao voltar, o Marquês em pessoa estava á sua espera no quintal.
- Como a raposa daquela história melosa do principezinho…estás a tentar cativar…
E sem se dar muito bem conta ainda hoje não sabia se era ele que tinha adoptado o gato ou se o gato o tinha adoptado a ele.
Cresceu uma ligação sincera, extraordinária, uma amizade, um amor inocente e lindo. Carabás foi entrando, entrando até passar a fazer parte da sua vida e transformá-la, amansá-la e conseguir enternecê-lo a ele de uma maneira inexplicável.
Por vezes aparecia acompanhado de outros que requeriam também uma refeição reforçada quase sempre ao fim da tarde.
John começou a despojar-se dos seus receios e da sua timidez.A abrir-se.A fotografar, a tirar selfies, nas vilas e cidades, nos lugares por onde andava como um maltês que se apropria do cenário livre e sem complexos.Como o seu dono, o gato de raça europeia que se espreguiçava e oferecia a barriga para ele fazer festas numa rara prova de confiança.
John sentiu vontade de contar ao seu amigo escritor , o grande Mário, a sua experiência singular mas custou algum tempo a ganhar coragem.Nunca perdia o senso das conveniências e do que os outros poderiam classificar como estranho ou ridículo.
Mas um grupo de amigas, mulheres e raparigas muito assanhadas e navegadoras da Internet e em uníssono soltavam likes nas suas fotos e postagens e ele libertava-se progressivamente de todos os receios:
- Ora bem, com sua licença, que se lixe,Eu vou ser eu!
E sua Excelência o Marquês,ou simplesmente o Gato que nesse momento estava a dormir refastelado em cima de uma almofada no sofá da sala, abriu os olhos meio ensonado, pareceu compreender o que se passava, entender o amo e… sorriu, senhor de si e de toda a sabedoria e conhecimento de causa.