VAGABUNDO

E o rapaz, de origem incerta, com uma humildade visual que comovia, da calçada, acompanhava aquele aglomerado de pessoas que, em meio às risadas, engolia copos e mais copos de café com bons pedaços de pães. Ele estava faminto, mas não conseguia adentrar a padaria para pedir alguma coisa, uma fatia de mortadela que fosse para saciar-se. Era uma vergonha sem fim que lhe brotava na alma, como se alguém fosse capaz de julgá-lo errado por pedir algo tão simples. Foi e voltou umas duas vezes, até que tomou coragem e, contrariando todos os seus princípios, adentrou a padaria, dirigindo-se a um senhor que estava no caixa.

_Pode me ajudar? Es...estou...estou com fome, muita...fome! Um pedaço de pão, por favor! Cheguei há dois dias do interior e perdi minha carteira na estação, onde estava todo meu dinheiro.

Olhando-o com um ar de quem duvida da própria mãe, o homem, de quase dois metros de altura e pouco mais de 100 quilos respondeu, em meio a um deboche de causar náusea:

_ E eu tenho cara de otário, meu filho? Todo dia ouço essas histórias, uma pior que a outra – gargalhou com gosto. _ Então veio do interior? - debochou outra vez. Pois, para mim, tem cara de ser daqui e de quem vive de dar o golpe nos outros. Hum!

_Nã...não senhor! Sou digno! Honrado!

_Deixe de história, seu moleque! Isso aí até o Maluf diz, quero ver pra crer, porque na hora h, tudo o que diz não se sustenta. Honrado...faça-me o favor!

_Eu...

_ Pois saia daqui, sou um homem de negócios e não tenho tempo para gastar com tipos como você. Vá se embora! Vá, vá! Vá, antes que eu chame a polícia, seu vagabundo!

_Eu...eu...eu nã...- tentou explicar, sendo logo cortado pela avareza do comerciante.

_Caia fora já! Oh povo miserável, que faz qualquer coisa para não trabalhar. Saia, saia daqui já, SEU VAGABUNDO!

Com uma lágrima cortando a face, o rapaz abaixou a cabeça, cortou a avenida com o estômago a roncar, levando às costas uma pequena mochila desgastada pelo tempo. E caminhou mais algumas quadras, sem paradeiro. Que sina era aquela! Fez que ia cair quando uma mão o segurou, indagando:

_Você está bem, meu jovem? Parece pálido! – interpelou um senhor de uns sessenta e cinco anos.

_Sim! – resumiu-se.

_ Acho que você não comeu hoje, certo? – investigou o senhor.

_Si...sim! Quer dizer, não! Mas eu... Eu estou bem! - afirmou, ainda que a face o desmentisse

_ Quer um lanche?

O rapaz resistiu; pudera, tinha medo de ser chamado outra vez de “vagabundo”.

_Venha, meu rapaz! Não tenha receio! Venha comigo! Posso ajudá-lo, sei que está com fome, veja esta palidez... Que dó! Venha...venha...quero ajudá-lo.

O rapaz admirou o gesto daquele homem e, ainda que receoso, aceitou o convite. Minutos depois, lá estavam eles, por uma cilada do destino, na mesma padaria, para o espanto do comerciante, que vozeou, sem qualquer pudor:

_ O QUE FAZ AQUI? JÁ NÃO LHE DISSE QUE AQUI NÃO É LUGAR DE VAGABUNDO?

_Vocês se conhecem? – interveio o idoso, horrorizado com a cena.

O rapaz fez que não com a cabeça.

_ É...bem...esse cara esteve aqui há pouco pedindo...

_ Pedindo? – entrecortou-o, o idoso. _ Que bom! Isso é sinal de caráter! Se fosse outra coisa, como afirma, na certa, teria cometido um furto, não é mesmo? – desdenhou.

Corado de vergonha, o dono da padaria não respondeu, optando por se afastar, ainda que mantendo os olhos fixos no jovem coitado.

_Não ligue, meu rapaz, esse tipo de gente é comum por aqui. Xenófobo de uma figa! Quer ir embora?

Como a fome o impedia de raciocinar, lá permaneceram.

Quando o relógio da igreja próxima anunciou ser duas horas, todos foram surpreendidos por um assaltante, que invadiu a padaria aos berros. Alguns clientes conseguiram fugir do lugar, já outros se abaixaram, em pranto, em meio às mesas, inclusive o jovem e o idoso. O comerciante, que de início pensou ser uma brincadeira, ao encontrar o brilho incessante do 38 do malandro, passou a implorar ajuda a todos os santos, pois tinha mulher e filhos para sustentar.

_Passe logo a grana, toda a grana, não deixe sequer uma moeda, senão estouro seus miolos. Vamos! – salivava o criminoso, como se dominado por algum entorpecente.

_Temos que fazer alguma coisa, coitado daquele homem – disse o jovem, profundamente compadecido, para a surpresa do idoso, que mal conseguia se mover de medo.

_Mas... mas fazer o quê? Ele tem uma arma.

_VAMOS!!!!!!!!!!! PASSE TUDO!!!!!!!!!!!- esbravejava o meliante

_Tenho...tenho...fi-fi-filhos e...e ... mulher para cuidar....por favor, não leve nada. Por favor! Por favor! Sou um homem honrado, temente a Deus, que gosta de ajudar o próximo.

_E EU COM ISSO? – retrucou o assaltante. _ TEM BURRO PRA TUDO! VAMOS, PASSE LOGO! VAMOS!

_Deixe o rapaz, ele precisa do dinheiro para cuidar da família...- pediu o jovem, com a mesma humildade de outrora, levantando-se.

_Abaixe, ele vai te matar – pedia o velho, puxando-o pelas calças ralas.

_ E QUEM É VOCÊ PARA SE INTROMETER, SEU VERME? JESUS CRISTO? SE FOR, JÁ VÔ AVISANDO, TENHO PASSAGEM DE PRIMEIRA CLASSE COMPRADA PARA O INFERNO– bradou o criminoso, apontando-lhe a arma. _ FALE!!! FALE!!!!

_Eu...eu...eu não sou ninguém!!!

_ENTÃO QUER LEVAR UMA BALA NO LUGAR DESTE MISERÁVEL? - indagou, apontando para o comerciante.

_Abaixe...abaixe...- desesperava-se o idoso._ Saia daí!

Antes mesmo que a resposta do jovem pudesse ser ouvida, uma bala rompeu seu peito, jogando-o contra uma parede lateral. E antes que o assaltante pudesse efetuar o segundo disparo, a polícia surgiu em cena e o rendeu com proeza, como nestes filmes que ninguém mais aguenta assistir na TV a cabo. A essa altura, o comerciante estava debaixo do balcão, fazendo as promessas que jamais cumpriria, enquanto o idoso, tomado pelas lágrimas, aproximava-se do pobre rapaz.

_Ele está morto! – proferiu, com a voz embargada.

Ao revistar o bolso do malando, os policiais encontraram uma carteira com a foto do jovem agora assassinado, para o espanto do padeiro, cuja consciência era condenada ao remorso eterno.

__ Mas o que isso? – inquiriu o oficial. _ Essa carteira é do ...

_ ...É do “vagabundo” que acabou de salvar a vida deste homem – completou o velhinho, indignado, agora apontando para o dono do estabelecimento. _É a primeira vez que vejo um “vagabundo” dizer a verdade e ainda salvar a vida de outro vagabundo. Incrível! Agora durma com essa, senhor comerciante! – sentenciou, com os olhos reluzentes de cólera, afastando-se do corpo. Conseguirá? Não queria estar na sua pele!