A LUTA

Ela fez zapping repetidas vezes.Num transmitiam uma luta de boxe perigosa e sangrenta, noutro canal uma deputada esganiçada que tinha menos de “de” e mais do resto vociferava odienta contra o Primeiro ministro que sentado e impávido na tribuna central a olhava de esguelha enquanto quase todo o hemiciclo em peso consultava a internet a propósito de coisas que nada tinham a ver. E os arautos da desgraça, os eleitos da Comunicação Social comentavam a cena em estilo de coscuvilheiras.

Enquanto isso, ela deambulava pela casa de chinelos na azáfama de se preparar para apanhar o comboio das seis e cinquenta.Em setenta e oito rotações, o escovilhão, a fita dental, a escovagem da dentadura implantada, o duche, o shampoo, o amaciador, o secador, a loção para o corpo, o creme para os pés, o sérum para as rugas,o pó de talco,o perfume, etc.

A corrida pela avenida como se fosse uma maluquinha, a estação, a gare à pinha, o passe, o mau odor, o comboio de Sintra, os solavancos, as entradas e saídas.

- Merda, não me apalpe, cacete! – gritou uma mulher de côr perdida na confusão do corredor à cunha.

Suburbano.Reles.

Descia em Entre Campos e uma chuvada ameaçava desabar por entre as nuvens mas ela queria lá saber…preferia caminhar, andar , oitocentos metros até ao consultório com uma passagem breve pelo café da esquina onde os clientes daquela hora mal se ouviam ensonados e encolhidos.

- Sai um cimbalino.

- Oh homem você não está no Porto, está em Lisboa.Diga “bica”,sai “um café”, o raio que o parta, menos esse nome possidónio de morcão.

As pessoas senão tinham motivo de “marrar” umas com as outras, tratavam logo de arranjar.

Ela era a primeira a entrar no escritório e demorava uma hora nos preparativos como uma velha actriz antes de entrar em cena, a ligar o computador, abrir as janelas, arejar os gabinetes, amontoar os papeis, verificar o multibanco portátil e ir até á casa de banho aliviar-se.

Pensava com cara de parva:

“Se alguém disse que a melhor coisa na vida é f… é porque nunca esteve á rasca para cagar!”.

Os clientes ou pacientes ou seja lá o que eles eram começavam a chegar às oito e o desfile de queixas, desabafos e misérias iniciava-se.Mas tudo num contexto e cenário de um certo desafogo financeiro como conviria a uma empresa de serviços privada.

Por vezes era acometida de um ataque de sono tão violento ao ouvir aqueles carpires estéreis e repetidos que tinha que dar um pontapé em si própria para não adormecer no meio da sessão.A psicoterapia tinha destas coisas. Mas esforçava-se imenso para trazer a bonança e a racionalidade àquelas criaturas perdidas num labirinto de emoções.Havia também avaliação de condutores e orientação vocacional.Pendências, incidências e desbaratos.Pequenas pausas em que trocava picardias e alfinetadas com os colegas.Quem mandava em quem, quem era superior a quem, enfim a mesma treta por todo o lado.

Aos solavancos e tropeções, a manhã lá se passava e ela insurgia-se contra todos e contra si própria numa revolta genuína de trezentos e sessenta graus porque, mais uma vez, se atrasava dramaticamente para ir engolir uma sopa à pressa no snack e correr para o metro, aproveitando para ligar à ex amante e á sua amizade colorida.

Mas também era o primeira a chegar à associação sem fins lucrativos de solidariedade social e interesse público antes do resto da equipa dar à costa como a família Adams num filme de terror.

E depois lá vinham os outros a arrastarem-se como se fossem para a fôrca.As três gordas múmias paralíticas que pouco ou nada faziam, o esticadinho do assistente social que empurrava tudo o que podia para ela, a patroa cheia de olheiras porque passara a noite no bengaleiro do cabaret para juntar mais uns trocos e que sonhava que senão fosse baixa e atarracada mandava a moral às ortigas e dedicar-se-ia ao requebro sensual das danças de varão.Mas em compensação usava uma linguagem mais baixa que a de um carroceiro grunho e violento.Vinha a mal aprontada que atendia os telefones, o animador social que era um exemplo de desânimo pessoal irremediável e a presidente com as suas quatro cadelas caniche amestradas que já não queria saber nem se importava com mais nada e cujas agruras da sua infecção controlada pareciam ter feito sobreviver a um banho de soda caustica e ficado seminconsciente num limbo de indiferença e calma desdenhosa.

Ah a ela o psicóloga de serviço cabia-lhe atender as vítimas daquela epidemia traiçoeira que mudara para sempre a vida da população, tirando-lhe um pedaço considerável da alegria de viver: as prostitutas bem falantes, os prostitutos acossados, os homens e mulheres excluídos e caídos em desgraça, os travestis,os transexuais, os frequentadores incautos de orgias e festas do vale tudo que iam para ali vomitar as mágoas tremendo os horrores e terrores da sua infelicidade marcada pelo contágio e pela doença.

Quando resolvera tirar o Curso depois de ter sido dispensada do emprego onde era profissional há quinze anos e decidira canalizar grande parte da sua indemnização para estudar, uma das motivações fora poder ajudar os outros a aliviar o seu sofrimento.Mas via agora que o sofrimento era um oceano imenso e infindável e que a sua acção não passaria de uma tentativa patética de o esvaziar com uma colher de chá.

O sofrimento que já fora tão bem equacionado por Dickens, Wilde e Dostoyevski.

Havia ainda que lidar com as ingerências e lutas internas para conquistar o poder e sobressair sobre os outros ou na melhor das hipóteses,numa explicação eufemística de hall do teatro, as pessoas queriam tanto fazer um bom trabalho que se matavam umas às outras.

A tarde passava lentamente.Ela voava para a estação, falhava o primeiro, esperava pelo próximo comboio, regressava lívida, telefonava à mãe e a outras pessoas, esvaída, desentranhada e exausta.

Chegava a casa, esfomeada, ligava a televisão que transmitia conflitos, lutas, as mesmas coisas, mudava para as telenovelas onde sonhava ser estrela,um ás e onde pretensas actrizes impecavelmente vestidas e penteadas discutiam saracoteando os caracóis e convencidas que iam muito bem. Ela entretanto enchia a mula, devorando tudo o que havia no frigorífico até se sentir enfartada e mal disposta.

Depois ia deitar-se porque no dia seguinte tinha que se levantar muito cedo.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 21/08/2019
Código do texto: T6725576
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