A FLOR DO MUGUET
“O muget é uma flor escondida,É uma flor pequenina e branca que tem um perfume mais maravilhoso e mais belo do que o perfume dos nardos.”
Sophia de Mello Breyner Andresen – “O Rapaz de Bronze”
Ela era como a flor, escondia-se numa postura de discrição e recato ou talvez como uma laranja cuja metade se deixava ver enquanto a outra permanecia prudentemente oculta e abrigada.
Preenchia o seu quotidiano de afazeres era activa e muito enérgica.Rezava o terço, conversava com o Padre, ia à piscina, cumprimentava toda a gente, deixava-se bem conduzir pelo seu par nas danças de salão.
Mas por vezes de regresso a casa recordava as suas mágoas com pesar e infinda tristeza.O que tivera de sacrificar a troco da sua consciência, daquilo que achava certo e a obrigara a abdicar, a sacrificar, a negar como uma renúncia cruel.
“Aprenderei a ser ainda melhor pessoa” cogitava no seu íntimo.
Comparecia sempre às festas e aos eventos, transportando um sorriso e uma boa índole.Aos casamentos e baptizados.Adorava fotografias, selfies, recordações de bons momentos em que os homens fazem tréguas e parece que aprendem finalmente a estimar-se.Organizava chás e patuscadas em sua casa e convidava amigos e conhecidos.
- Sem um sorriso, ninguém está vestido…Sejam bem vindos…
Ela entendia que os outros, alguns a olhariam com condescendência.Uma senhora simpática, alegre, uma solteira alegre, enfim…Não era tôla.
O que adorava mesmo era viajar.Conhecer novos mundos.Novos povos.Sentir a diferença, a grandeza que lhe dava força para prosseguir e guardar o prazer de planear a próxima aventura, geralmente com a irmã, a sua companheira das grandes travessias fosse a Paris, ao largo da Nôtre Dame ou em Marrocos a explorar com um arrepio o exotismo e o mistério do esotérico.
O seu segredo era dar-se bem com toda a gente, falar de tudo e abster-se de tecer juízos de valor em público.
Há muito tinha sido professora, amara e fora amada e guardara num cofre todas essas vivências marcantes.Não gostava de falar delas.Sobretudo a qualquer um.
Cultivava o gosto pela diversidade. A poesia, a música, a prosa, a filosofia e as belas artes.
Mantinha um diálogo virtual com amigos e admiradores da sua candura com os quais trocava as mais díspares e opostas postagens.
Mas havia noites em que a solidão lhe pesava como um velho manto que aperta e asfixia e não conseguia pregar olho.Dava voltas na cama com a insónia.Levantava-se e ia beber água.Voltava para a cama e andava ás voltas na net e no mensageiro.Ansiosa, mal disposta, amarafada.Num frenesim.
Ligou na manhã seguinte à sua velha amiga em aflição:
- Ai filha acho que ontem vi tudo às cores e provoquei uma pequena grande confusão internacional.
- Não me digas mas como?
- Troquei as mensagens e não sei se dei início, sem querer, á terceira guerra mundial.
-De facto não percebi porque é que me mandaste uma foto do Espírito Santo, sabendo que eu gosto muito mais de um bom bofe todo descascascado.
- Pois isso não era para ti mesmo.E o pior é que mandei uma foto minha muito decotada em fato de banho ao Padre e aquele clip de felação que partilhaste connosco a um amigo virtual de outro continente.
- Ai filha não te importes.Quanto ao senhor padre o que é bom é para se ver e ao outro,se se trata daquele que se arma em escritor deixa que esse aí ultrapassa tudo todos, mais perverso e safado que a nossa turma da pesada.Vão fingir que não viram e não ouviram e fica tudo em bem.
Ah sim ela ficou ainda ser mais amada porque involuntariamente tinha comprovado a sua humanidade e sujeição aos equívocos e trapalhadas da convivência social.
Por isso de subito e inesperadamente respirou fundo e pôs-se a rir. A rir tanto que quase vomitava o fígado pela boca.A vida afinal era também uma comédia.
E ela ressurgiu e agradeceu a Deus mais esse dia, esse mar. esses enredos.
Quase todos sentiam crescer uma ternura por ela.
-Amanhã, vou acordar e apreciar mais um dia de sol radioso.E depois logo se vê.
Exactamente como a Poetisa tinha descrito aquela flor discreta e misteriosa.
“Durante o inverno ela dorme na terra debaixo das folhas secas e desfeitas das árvores.Dorme como se tivesse morrido.Mas na Primavera as suas longas folhas verdes furam a terra e crescem durante alguns dias até terem um palmo de altura”.
E rematava a descrição que em comparação se assemelhava a ela para muitos que gravitavam á sua volta, na sua vida.
“Então muito devagar as folhas vão-se abrindo e mostram á luz maravilhada as campânulas aéreas, brancas e bailarinas da flor do muguet.E o vento da tarde toma em si o perfume do muguet, leva-o consigo e espalha-o no jardim todo”.
Ela achou que o fresco da noite se tornara acentuado e em paz consigo mesma fechou a janela e foi aquecer um chá.