CELEBRIDADE

À sua volta a mediocridade mas no seu âmago a aspiração de se libertar, de desertar e de se evadir.Aos dezasseis anos.

Mimi, a mãe de um dos rapazes era uma mulher pouco ocupada e gostava de passar muito tempo no Liceu, a conversar com todos talvez numa tentativa de proteger e supervisionar a irregular carreira de estudante do filho.Além disso praticava a quiromancia.

- Ah aquele vai celebrizar-se na Política.Eu vi nas linhas da palma da sua mão.O outro por pouco que não chegará a Papa, não fosse o seu radicalismo exarcebado…aquele ali há-de dar no advogado mais influente do seu tempo…

Magro, infeliz e na maior parte do tempo assustado ele afastou-se da bruxa contrafeito e juntou-se ao seu parceiro, o chefe de turma de que ele era apenas o subchefe e acólito.

- Vou abrir a janela.O Virgílio deve estar cheio de vontade de escarrar.Foi muito tempo no sanatório.Pode ter sido lá que fortaleceu o intelecto e se apaixonou pela mulher também tísica, coitada.Mas há três coisas associadas à doença: comer desalmadamente, foder a desoras e escarrar nos momentos mais inoportunos.Por exemplo, antes de uma aula.O escarro é próprio da doença.Vem tudo na “Montanha mágica. Thomas Mann.

- Credo! – retorquiu o colega e vaticinadamente futuro cardeal e quase papa.- Cruzes!

Era um jogo de subserviência e pega de toiros mas eles já estavam habituados há algum tempo, desde o primeiro ano.

Virgílio e Mário, os professores que não falavam um com o outro e que se defrontavam numa guerra muda ao sabor dos jogos de influência e que contavam partidários de lado a lado como uma rivalidade entre cançonetistas ou toureiros.

Virgílio Ferreira, o escritor, o autor do nouveau roman ou o romance ensaio, o que derivava, glosava entre Cícero e Ovídio,Sartre e o existencialismo, que andava na rua de cabeça enredada, a olhar para a frente no vácuo sem ver e falar a ninguém e que desfiava o programa aos solavancos,desabridamente como um vento norte que tudo leva.Ele pegava na Antiguidade Cássica passava às línguas mortas, introduzia-os no Latim, treinava sem cessar as declinações dos nomes e as conjugações dos verbos “É genitivo, não é dativo” e massacrava-os com as traduções e as retroversões como se eles tivessem, um dia,de perder a memória, fazer tábua rasa e serem clérigos ou copistas, ou transformarem-se, no mínimo no próprio S.Tomás de Aquino…No final de cada aula os rapazes pediam-lhe para autografar os seus livros num momento de desavergonhada bajulação.

- Setôr ainda não assinou a “Aparição”.

- Nem a minha “Alegria breve”.

-Já comprei o “Para sempre”.

Mário Dionísio com o seu eterno cachimbo apagado era talvez o oposto – centralizado, metódico, obsecado, insistindo e persistindo num ponto.O Plano. Sumários ideológicos e o comentário aos textos.O crítico de arte, o pintor e o poeta.E havia de ser o cicerone pelos tesouros da Literatura que haviam sempre de o emocionar e seduzir.E aquela voz perfeita, timbrada que ressoava numa articulação perfeita.

Dois génios, que fortuna tê-los aos dois no elenco dos docentes.

Era ele, o subchefe , que os esperaria lá fora,na porta, antes de cada aula, o primeiro a saudá-los com um “bom dia”cordial mas neutro e a desmaterializar-se em pequenez para se entregar de corpo e alma a ouvir a prelecção dos mestres.

Não compreendia bem nesse tempo o que era a celebridade.

Fizera uma pergunta ao realizador Brum do Canto sobre isso mesmo depois de uma sessão de cinema no ginásio do liceu organizada pelo professor de História, Bénard da Costa.Observara na plateia na fila da frente a mãe do realizador,a célebre Berta Rosa Limpo a autora de um livro de receitas com mais de mil páginas intitulado “Pantagruel” acompanhada da sua amiga Maria Lamas, uma vestusta escritora de cabeleira alva , muito avançada para a época, de cunho feminista e com a sua obra parcialmente cortada pela Censura.

Aplaudira o actor António Montez ex aluno e mestre do grupo cénico do liceu na estreia da peça de Alves Redol “A forja”no Teatro Laura Alves e vira a dois passos a esbelta actriz Manuela de Freitas de olhos grandes e azuis, toda vestida de preto, de botas altas brilhantes a fazer o papel da Morte que rondava os filhos explorados barbaramente pelo pai, numa encenação inspirada de Jorge Listopad.

Conhecia actores e encenadores, produtores e realizadores das suas participações nos programas infantis na rádio.Mas a celebridade, a exposição e a fama aterrorizavam-no inexplicavelmente.

Pensava com frequência.”Talvez eu afinal não goste de pessoas”.

E consumia-se com o estudo da História, da Filosofia e do Alemão, espetador de uma galeria de horrores com o tornitruante Simões Serra a perorar sobre orgias e bacanais romanos, uma réplica de Golias em fato completo, David Freire que se empolgava com Leibnitz e Shopenhauer à cintura e citava Kant e Comte como se estivesse a comer pipocas durante a matinée.E Júlia , a belíssima Júlia com o vestido colado ao corpo e a melena desgrenhada que sibilava com sensualidede : “Güten Morgen.Setzen Sie sich bitte”e se indispunha com o barulho e os períodos menstruais.

- Já reparaste que o Dionísio é muito baixo mas que mandou pôr umas solas com coturnos que o elevam às alturas?Parece a Eunice e a Glicínia nas Criadas do Genet.

- Mas que exagero!

- Sim, caso para exclamar alto “Cruzes” e o pior é que eu pergunto se toda esta informação imensa que temos que meter na cabeça à força um dia nos servirá para alguma coisa.Bem o Latim deverá servir-te para a Teologia ou para o Seminário.Quando fores célebre.

- Mas eu não quero ser célebre!

- Não interessa.A mãe do Baeta disse que havias de ser.E ela é uma espécie de vidente.Advinha o futuro.

- Disparate!Não acredito nisso.

Mas eles dois davam-se bem embora soubessem que iam seguir caminhos diferentes: um para Direito, uma faculdade cinzenta a arrebentar de gente pretensiosa e o outro para uma vocação forte e indomável de cariz religioso com um destino desconhecido e misterioso.

No fim do ano, encararam-se e despediram-se no pátio norte:

- Boa sorte!

E apertaram as mãos friamente .Ele deixou o colega que poderia ter sido um amigo para trás e desceu as escadas com lágrimas estupidamente a assomarem nos olhos.

As expectativas naquele momento eram altas e o futuro uma estrada longa e intrigante.Que vidas seriam as suas?Que futuro o destino lhes reservava?

Passaram-se muitos anos e ele por acaso voltou a entrar nas instalações do liceu degradado.Uma vez para votar.Outra para assistir a um concerto de música clássica no ginásio.Ou para ver uma peça underground de um grupo marado nas catacumbas junto ao Laboratório de Química com um actor enterrado na areia até ao pescoço.

Olhava sempre de relance para os plátanos, os pátios e as galerias desertas que na sua imaginação via encherem-se de gente – professores, alunos e funcionários, vozes e assobios, apitos do velho contínuo,o Aparício e como fantasmas ele e o colega ainda adolescentes e crédulos a despedirem-se gravemente antes de cada um partir com resolução e pesar em busca do seu destino.

Então um travo amargo subia-lhe à boca, tinha que fazer um esforço para afastar as recordações e sacudir aquela ideia da cabeça até ela se desprender e desaparecer simples e teimosamente algures num canto remoto da sua tristeza indigna.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 17/08/2019
Código do texto: T6722373
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.