HÖLGA

Foi para sempre aquela impressão e memória.Ele imaginou a cena previamente, apontou no guião e no momento, disse-lhes a marcação:

- O Quentin está na esquerda baixa.A Holga entra pela direita alta e fála.

- Olá!

-Sim, exactamente e tu olhas para ela intensamente com um olhar de gratidão porque ela vem resgatar-te, salvar-te e respondes logo…Então?...Vá lá,homem, responde.

- O quê?

- O que está no texto:”Olá!”.Andas no seu encalço dão as mãos e saiem pela esquerda alta.

Miller…Arthur Miller.”After the fall”.Uma peça sobre uma mulher morta que não se podia defender.Uma confissão.Uma justificação.Uma catarse.

Mas ela a terceira,uma espécie de anjo entrava radiosa, uma jovem mulher contida, de olhos claros, olhos tristes, a lutar lá fora pela sua afirmação e dignidade e a sua participação na versão não profissional excedia seguramente a inspiração original, uma tal Inge Morath, com mais autenticidade e fibra que a interpretação da Eduarda Pimenta de que ele tanto gostara no Teatro na encenação do Artur Ramos.

Ela talvez pertencesse àquele grupo das “Mémoires d’ une jeune fille bien rangée”que catapultara a Beauvoir para a galeria das grandes escritoras universais, era tímida, reservada e já mulher, mãe e chefe na empresa conspurcada de maus caracteres, destacava-se pela sua energia, performance e dedicação.

Ele tinha pouco acesso direto à sua persona mas tentava desde o começo, fazê-la perceber que a considerava como um activo valioso no pobre grupo presunçoso e pretensioso.Porque lhe advinhava as leituras, a cultura e o gosto e ficava espantado com as suas demonstrações de talento.

O pai matraqueva-o com severidade:

- Deixa a porcaria do Teatro.Só atrai a escória.Se quiseres escreve para o Teatro, isso é diferente.Mas não te envolvas nesse meio.

Ele ajudava a desenhar a sua carreira de actriz nos tempos de lazer.Adorava ouvi-la recitar Régio,desempenhar uma jovem esposa desiludida sob a batuta inspirada da grande escritora, Maria Judite de Carvalho “ Aquela que fora Querida” ou numa caricatura a representar a meretriz em “A noite e o riso” de Nuno Bragança.Sempre uma surpresa.Uma revelação.Ela sabia e conseguia colocar as máscaras e retirá-las de seguida voltando intocável á sua figura de senhora bem comportada.Como seriam os seus sonhos?Neles compensaria aquele modelo de auto-disciplina e controle emocional?Ou seria apenas um mar calmo em que reinava a bonança sem tempestade?

O ambiente era mais ou menos reles como o pai dele lucidamente vaticinara com ciúmes e inveja e eles tinham que comunicar já nessa altura, sempre à distância.Por telefone interno de fugida ou por missiva enviada por estafeta.Aí discutiam a produção, as manobras dos subgrupos viscosos e o feeling magoado de ambos naquela refrega vã com o objectivo de levar à cena um portento, conseguir concluir um projecto.Inferno.Trabalhos desnecessários.Cruel desilusão.

O Flôr dizia-lhe muitos anos depois:

- Ah sim.Já sei como tu és.Gostas de cortar radicalmente com o passado.Deves provocar em ti próprio uma amnésia induzida.

Mas ele não respondia envergonhado, mantendo a pose , com ar enigmático.

Viveu e atravessou vicissitudes e ela no que pôde manteve-se fiel e aconselhou-o:

- O perdão é sublime!Perdoa! – escrevera-lhe para Moçambique onde ele se encontrava a trabalhar episodicamente enquanto se divorciava e mudava de vida.

Timebends.As curvas e devolutas do tempo.A vida afasta as pessoas de quem se gosta e se encontra afinidades.Há dezenas de destroços pelo meio, que atrapalham e separam.Como um rio com as águas furiosas.Desgovernado.

Mas sempre que se reencontravam no meio de grupos,com toda gente tensa e a procurar as falhas e as fraquezas, uns dos outros, sorriam num sinal de compreensão e reconhecimento mútuo. ao mesmo tempo que diziam sem palavras.

-Não faço ideia.Estarás bem?Espero que sim!

A imensidão curta dos anos que passam como nuvens no horizonte imperscrutável atravessou-os implacavelmente e …nunca mais se cruzaram presencialmente.

Até que um dia … nos grupos da poesia e literatura ela sinalizou um escrito dele com um Like…

Ele estremeceu ciente que o século já tinha mudado, já estariam maduros com certeza…com muito mais rugas no rosto e uma infinidade na alma.Mas houve trocas no mensageiro.

- Como estás?

- Não muito bem.Estou doente.

- Vais conseguir…vais vencer…és a Holga, a forte, a vencedora, a redentora.

Advinhou que ambos sorriram em silêncio com um mundo de lembranças atrás de si.

Enquanto a vida voraz e erosiva soprava em fundo.

E ele maquinaria:

-Não sei.A deixa pode ser: “saibamos encarar o destino seja ele qual fôr mas sem deixarmos de lutar, sempre e até ao fim!”

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 16/08/2019
Código do texto: T6721423
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