A JANELA FECHADA

Tentava não se lembrar dessa época.Ou não conseguia recordar-se com clareza.Memórias perdidas num nevoeiro denso.Eram os anos sessenta.Imagens difusas e a preto e branco…

Lurdes chegava cedo, alvoroçada para falar com a madrinha, a produtora, antes do início da gravação.Tinha trinta e três anos, uma figura magra e esticada, uns olhitos azuis muito vivos, era casada, tinha um rapazinho de quatro anos e acabara de descobrir os fortes e sacudidos prazeres do sexo numa relação adúltera com um colega de trabalho muito sabido e anormalmente dotado.

Desde os doze anos que fazia a voz de menina nos programas radiofónicos infantis da Emissora e continuava paradoxalmente até então numa perigosa variação entre Alice no país das maravilhas e pecadora clandestina na pensão tolerante.

Mário tomava o autocarro com uma hora de antecedência , descia na rua ao cima da faculdade de Ciências,tomava um café que o deixava nos píncaros, descia com solenidade a rua íngreme, passando o Instituto Britânico,a praça das Flores, espreitando furtivamente para o mundo misterioso da vida nocturna dos pequenos restaurantes e bares encerrados ainda a meio da tarde. Chegava aos velhos estúdios invariavelmente cedo, acedendo a esperar à porta a olhar meio perdido os automóveis que passavam e seguiam caminhos diversos na bifurcação do final da rua.Às vezes, pegava no guião e revia a personagem que tinha que interpretar ao microfone daí a um tempo.

Tinha dezasseis anos, estatura média, esguia e um ar atento mas com olhos ensombrados e tristes.Ainda frequentava o liceu, no último ano,na turma que lhe daria acesso à faculdade pretendida.Já namorava uma miúda baixa,ciumenta e egoísta com uns dentes pequenos de corvina e um sorriso meio histérico que o seduzira numa festa de aniversário.

Lurdes ficava lavada em lágrimas mal se sentava e acercava de uma senhora distinta com o cabelo armado, dentro de uma rede, com um lenco branco que trazia ao pescoço saia num padrão pied de poule e blusa preta e um ar prático, pontuado por um relógio grande de homem no pulso.Dona Madalena, a produtora.

- Ai Madrinha que não sei o que fazer da minha vida, juro que não sei…

- Lu, a tua primeira preocupação e prioridade deve ser com o inocente do teu filho.Uma criança, quase um bebé.

Ela tentava encontrar um escape, uma justificação:

- O José Alexandre já compreende perfeitamente que o casamento entre mim e o pai dele acabou.

- Com quatro anos?Querida a quem é que tu queres enganar senão a ti própria?

Lurdes calava-se ressentida.Ela sentia que o Rui Milhafre a fizera desabrochar, ela na cama enlouquecia com ele e não conseguia pensar sequer em renunciar àquele supremo prazer e suprema delícia.

Mário entrava quando o elenco juvenil chegava.O Inácio, a Nelinha, a Milucha e outras criaturinhas com nomes em diminuitivo ou de marca de bolachas.Nesse momento esquecia-se de tudo o que o confrangia e caminhava solto e feliz ao encontro do enredo, da música e do imaginário.Deixava de se envergonhar com o quarto minúsculo ao lado do da avó, as discussões violentas entre pai e mãe apanhados no meio de um casamento errado, o bullying dos colegas no liceu…no momento, a calma e alegria como quando ia ao cinema ou assistia a um espectáculo e se evadia da sua vida desprotegida e infeliz.

Dona Madalena advertia Lurdes em voz baixa:

-Vá filha recompõe-te.Disfarça.Vamos começar – em voz alta –Já chegaram todos?

-Falta a Dona Maria.- censurava um dos actores profissionais já a postos.

Mas logo a seguir, Maria entrava afogueada.

-Hoje o ensaio atrasou-se e só consegui sair do teatro há meia hora.Que canseira!E que secura!Estou cheia de sede.Ainda tenho tempo para tomar um copo de água?Preciso de aclarar as cordas.

Nesse momento a grande e conceituada actriz Dolores assomava no estúdio ao lado separado do deles apenas por um vidro insonoro.

-Então não vai falar à sua cunhada, Dona Maria ?

- Agora não posso.Tenho que olhar para o meu papel mais uma vez.- franzia-se denotando ciúme pelo sucesso da outra actriz, irmã do marido na vida real.

-Então Lurdes já pode voltar a participar nas nossas emissões?

- Não. Estou obrigada á clausula da exclusividade enquanto o “Simplesmente Mania” estiver no ar.

-Mas então nunca mais.Ouvi dizer que na Argentina já dura há um ano.

-Hoje a Lurdes vem só dar uma ajuda na cena de choro da Joaninha.A Nela chora muito mal e assim em vez dela chorar, chora a Lurdes e ninguém percebe quem é.

Lurdes começou a chorar a sério mas por causa do seu segredo, a perspectiva horrível de perder o acesso às investidas íntimas de Rui, o seu hábil cavaleiro.

-Vou à casa de banho e volto já.

-Vai à vontade que só tens que chorar no fim.

Os técnicos enfadados arrancaram com o indicativo do programa.Enid Blyton e mais um episódio dos sete. Clube, senhas, Toy o cão cujos latidos eram enlatados de som gravado,A tramóia dos patifes, a aventura, a coragem e esperteza dos miúdos numa adaptação que durava meia hora a representar com separadores musicais incluídos.

Mário pensava na interpretação tal como a descobrira em leituras e filmes que desenhavam o método do Actor Estúdio de Lee Strasberg e as suas aplicações no cinema como por exemplo no filme que tinha visto com o seu único amigo no Cinema Império.”A raposa” de Mark Rydell baseado numa novela de D.H.Lawrence com Sandy Dennis a fazer de lésbica reprimida, Anne Heywood a ser desfrutada por ela e por Keir Dullea - no seu auge - a interpretar o papel de macho conquistador. E algumas cenas cortadas por causa da Censura, deixando as sequências por vezes, sem sentido.

Enganos, repetições,

- Ai que me enganei e disse “mamas” em vez de “dramas”.Posso repetir?

O ruído da banda magnética a voltar para trás.

Mário não sentia uma grande pena de ter perdido a Viagem de Finalistas a Paris que custaria aos pais dinheiro que eles não dispunham e que a mãe talvez pedisse ao Avô para subsidiar nem pensava mais nos dentes pequeninos da namorada á volta do seu pénis em franco crescimento ameaçando magoá-lo com umas assustadoras dentadinhas durante o inexperiente sexo oral que ela gostava de lhe fazer.

Fugia literalmente e evadia-se para trás da personagem, “Pedro”, presidente do Clube em perseguição de Lúcio Bolan o malfeitor e da aventura, incólume ao medo, um herói invencível de matinée.

A ficção era mil vezes melhor do que a realidade.

Finalmente a gravação terminava e nele ressoava um doloroso e decepcionante anti climax.Despedidas, adeus, até para a semana, a emissão era semanal, faltavam mais três episódios para o folhetim chegar ao fim.

O marido traído de Lurdes chegou com o filho de ambos para a vir buscar na tentativa vã e falsa esperança de recuperar a mulher transviada.

Naquele dia Mário voltou ao estúdio porque se tinha esquecido do guarda chuva e começara a pingar na rua e deparara com Dolores, possuída por uma personagem, a declamar, ensaiando para outro programa que se gravaria em seguida, o célebre “Teatro das Comédias” ensaiado pelo seu colega e grande actor, Álvaro Benamor.Ficou extasiado com o profissionalismo e encantado com a sua simpatia:

-Também comecei nos programas infantis.Vou consigo ao estúdio e assim ajudo-o a encontrar o chapéu de chuva.

Lurdes deixaria tudo e todos e fugiria para o Brasil para recomeçar a sua vida , ao lado seu galã de rua.

- Ela disse-nos que partia …com a consciência tranquila – diziam os vizinhos

- Já ouvi chamar muita coisa.Mas consciência… -- retorquiam os da má língua.

Viria a um tanto hipócrita revolução dos cravos e o programa infantil foi acusado de reaccionarismo e saneado.

O tempo chicoteara aquelas vidas sem apelo nem agravo.

Mário economista e gestor, trinta anos depois odiava lembrar-se.De certa forma tinha conseguido vingar na vida e ultrapassado bem os traumas daquela época, a sua infância e juventude falhadas.

Talvez o fel e a amargura tivessem azedado essas lembranças que poderiam até ter sidos saudosas e poéticas.

Com todas as forças da sua alma ao percorrer o apartamento grande e confortável, tentava manter bem fechada aquela janela, sem saber muito bem porquê.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 13/08/2019
Código do texto: T6719159
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