OS LENTES

O que lhe valia talvez era estar muito próximo do fim, isto é, do momento legalmente possível de pedir a aposentação.Mas para já deixava-se ir, que remédio, vogar ao sabor da corrente,”em Roma sê romano”, meio perplexo meio irritado, um misto.”Ah sim!”

Levou os alunos a um Instituto Universitário a um jogo de gestão.Três raparigas e dois rapazes de quinze anos e já com alguma sabedoria de vida nas mochilas.Eles adoraram mudar de ambiente, faltarem às aulas e virem até Lisboa e ao bulício.

-Ai stôr tão bom.Que boa ideia!Boa bola!

Os mancebos tratavam-se por “manos” numa intimidade viscosa e as meninas carinhosamente umas às outras, pelo apelido. A suposta prática, simulação, propaganda para futura angariação de estudantes.Noventa por cento de empregabilidade e outras doces mentiras agradáveis de se ouvir.

Os professores como ele que acompanhavam os grupos foram recebidos numa sala ampla e presenteados com uma formação sobre Criatividade enquanto os seus alunos estavam entregues aos cuidados de tutores, alunos da instituição dos últimos anos do mestrado.A reforma de Bolonha e toda a treta e a auto – promoção e elogios inerentes.Como convinha e era suposto.

A Formadora era uma psicóloga nos seus quarentas muito suculentos, cheia de garra e com muita gana e vontade de se entregar como se estivesse possuída pela matéria e se quisesse “dar toda a Cristo” como já lhe acontecera a ele em tempos idos, na sua pré-história .

Os cerca de trinta e cinco professores como ele todos mais velhos e na sua maioria imponentes matronas olhavam entediados uns para os outros e para ela com desconfiança e desdém , uns mais pretensiosos outros mais alheados mas todos – sem excepção – muito descrentes.

Jogos e joguinhos.,.energizantes,exercícios de relaxamento”Ai parece que já me estou a soltar… “exclamava uma com ar masculino e voz de metal e todos aos passeios pelo meio da sala a tirar da parede imagens de exemplos de criadores criativos.

- Eu para mim quero o Woody Allen.

- Ai eu também,mas nesse caso, deixa estar que escolho o Bill Gates que também presta.

As velhas senhoras sabidas descontraíam-se, interagiam e falavam tão alto que a desgraçada da formadora e psicóloga apetecível via-se e desejava-se para impôr a ordem.Muito mulas…

Chegou a bater duas pequenas bolas de verde sêco uma na outra que emitiam um um som zen para acalmar a assembleia indisciplinada e desobediente.

“Marisol e as putas velhas”pensou ele e horrorizou-se no momento a seguir ao reconhecer que “e eu sou uma delas!”.

Voltou de táxi para casa.Felizmente era sexta-feira e vinha o fim de semana e a pausa.Menos mal.

Lembrou-se, sem querer, de velhas figuras do passado, os seus mestres, admiráveis docentes , os lentes, brilhantes, senhores de grandes momentos,de lições e prelecções que perduravam até ao presente como mensagens mágicas que atravessavam o tempo.Multiplicadores de opinião, transmissores da sabedoria, alguns geniais e sem glória.

De manhã, ele levantava-se com as galinhas, preferia percorrer a cidade deserta, meter-se no troço da auto estrada e chegar à escola antes da invasão dos prestimosos encarregados de deseducação.Chegavam alunos de todas as idades com os pais, mães e avós desocupados e mal encarados a quem era permitido entrar nas instalações como se tudo fosse deles e parecerem um quadro que lembraria simultaneamente a feira ambulante do relógio e uma peregrinação a Fátima, terra de Fé.

Os discentes,era praticamente impossível motivar aquelas adoráveis criaturas na sua incipiência fosse para o que fosse.Estavam já severamente viciados nos telemóveis e nos WhatsApps e o modus faciendi também nem queria muito insistir com os aspectos comportamentais, antes pelo contrário.Para eles apreciar um simples livro era como ser forçado a engolir um frasco inteiro de óleo de fígado de bacalhau.

Havia os rankings, as exigências do Privado que transformava o acto de Aprender num serviço ao Cliente,aliás Sua excelência o Cliente que acima de tudo tinha o direito de reclamar, de insultar e difamar sem prestar contas.

Para além de leccionar , dinamizava o clube mais cultural da Escola onde os alunos ainda recém chegados à adolescência, já tinham artes surpreendentes de competir entre si, atraiçoarem-se, prejudicarem-se cruelmente sem uma sombra de culpa nem remorso, Talvez infelizmente na forja de mais uma futura geração de alegres filhos da mãe sem grande vislumbres de redenção…

Mas os seus pares, quase todos, lutavam como leoas para sobreviver nessa profissão tornada castigo e pesadelo.

Joana, a professora de Francês jogava poker com os alunos depois do horário numa mesa de pedra em pleno céu aberto no meio do pátio.Uma estratégia inovadora de conquistar a popularidade e estima da turma. Joaquina fugia com grandes grupos para visitas de todo o dia a aldeias da parvónia em prol da ecologia e das causas ambientais e todos procuravam distinguir-se com ideias…projectos… iniciativas como que a provar desesperadamente a sua incontestável superioridade e profissionalismo.

O sistema pura e simplesmente ficara de repente obsoleto, ultrapassado e inoperante.A responsabilidade de todos provavelmente.A Educação, o acto tornado fracasso, miragem , mal necessário ou violenta desilusão…

No público o sector marchava em manifestações de protesto, exercia uma confusão considerável e ameaçava com greves às avaliações.Os partidos insultavam-se uns aos outros por causa do congelamento de carreiras.Os dirigentes sindicais não se distinguiam dos seus congéneres camionistas em impropérios.

Alguns observadores sisudos comentavam.

- Ainda vamos todos voltar à bancarrota como há uns anos.Que grandes bestas!

O conhecimento, a aprendizagem…a Cultura e a Inteligência, (pelos vistos), tinham saído em bicos de pés e deixado o campus abandonado e vazio.

Ele tentara debalde evitar o desencantamento.Mas agora uma querida amiga acercava-se e questionava-o.

- Imagina tu que o Tomás, o meu sobrinho quer ser professor.De matemática.Acho de um mau gosto…Que conselho lhe darias?

Ele só pensou em sugerir que ela metesse a cabeça do rapaz num balde de água fria até ele ficar com dificuldade em respirar e gritar-lhe quando ele emergisse “Não!”… mas conteve-se e procurou uma forma mais soft de se exprimir.

- Que conselho lhe daria?Bem, um e com convicção: “Desiste!”

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 12/08/2019
Código do texto: T6718275
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