Obra de Arte
O museu existe mesmo. Pouco conhecido, retrata uma época em que estranhos fatos tiveram lugar e levaram a um futuro incerto, pois que a escuridão imperou por décadas. Seu endereço era quase sempre desconhecido, tudo era impreciso quanto ao seu acervo, mas ele o achou. E entrou.
A sua formação de jornalista, seus cursos de extensão em História da Arte, associados à sua curiosidade e investigação das expressões criativas e estéticas durante certos períodos da história fizeram dele um profissional único. Era conhecido com um perito da História da Arte, mas ele não concordava. Denominava-se, e era assim que se via, como um cronista da arte na história, pois o escopo dos seus trabalhos era entender e explicar alguns aspectos dos fatos passados através das manifestações artísticas do período.
Num dos salões encontrou-se a fitar aquele quadro na parede, fixamente com a curiosidade subjetiva da observação artística e da interpretação da mensagem do autor. Tão viva, pois ele tinha a noção do período histórico. Grandes, médias ou pequenas dimensões para o tema, não soube precisar. O estilo era... sim, não, difícil definir. Por um ponto a observar o traço era bem definido, por outro a imagem difusa. O sombreado às vezes descortinava clareza nas expressões. Mudança de matiz nas cores dependendo da maneira de focar, ou mesmo da atividade cerebral, parecia. Havia três personagens principais no painel emoldurado, com posições bem específicas cada um em relação aos outros, mas com sugestões de movimentos constantemente diferentes por olhares de ângulos desiguais: o Ministério Público, a Sociedade e a Mídia Geral.
Escrutinou toda a obra e elaborou a sua resenha, a ser publicada, prometeram-lhe, a qualquer momento até o fim dos tempos. O que segue.
O cidadão comum, em particular, o elemento unitário que vem formar a Sociedade em Geral, não aprendeu a ter opinião própria e fazer escolhas. Conforma-se com a superficialidade das notícias que a Mídia Geral lhe transmite. Não irá jamais se aprofundar no tópico e ter a sua avaliação autoral. Não tem tempo para isso, e nem interesse, tantas coisas há a tratar no seu microcosmo. Mas repercute as notícias. Muito. E, por vezes, com assertividade ferrenha. Os cidadãos comuns são repetidores de informação, isto foi o que o sistema educacional formou, não pensadores. Quando alguém emprega a derivada expressão “opinião publicada” ao invés de “opinião pública” não é por outro motivo.
É conveniente que assim seja e assim tenha sido ao longo da história humana. Governos em geral, ditaduras em especial, entidades religiosas, organizações dogmáticas, educacionais e tantas instituições se valeram deste modo de direcionar o raciocínio das pessoas. Há conceitos que se devem incutir na alma das pessoas à força de repetição, já alertou o fundador da academia.
Naquele mundo representado, haja ou não o espelho contemporâneo na nação, é o Ministério Público, e mais outra parcela do judiciário, o grande beneficiário deste “modus operandi”. O grande desequilíbrio que se observa entre os vetores que deveriam traduzir-se em uma resultante de ponderação igualitária é o que fornece o campo propício para a aberração florescer. A bem da verdade, a grande fraqueza dos outros poderes tem causa em sua própria inépcia, não há dúvidas. Muita pena que este desequilíbrio tenha permitido desenvolver a necessidade neurótica do Ministério Público de ser perfeito. Ali ele joga no campo dele, com a bola dele, com as suas regras, em frente à sua torcida, até o juiz é dele.
Bem que se está a mostrar, não a porção de trabalho pertinente, legítimo e eficiente do Ministério Público, mas o lado negro da força, justamente o representado pelos imaculados, os donos da verdade, que como tal, estão preparados para serem deuses, não seres humanos. O Ministério Público não precisa mais buscar a verdade. Os seus objetivos estão acima disso. Sente o gosto de poder fazer tudo o que pretender propor. O Ministério Público omite fatos que não são do seu interesse. O Ministério Público distorce fatos para atender o seu interesse. O Ministério Público mente para vencer o jogo.
E a Mídia Geral traduz-se no grande canal de difusão dos sofismas do Ministério Público. A Mídia Geral gosta desse produto escandaloso em escala industrial produzido pelo Ministério Público, pela simples razão de ter grande interesse midiático. O seu consumidor, a Sociedade, devota atração às ações espetaculosas envolvendo personalidades. Faz parte da condição humana, são notícias atraentes.
A Mídia Geral faz o seu papel de divulgar, é verdade, e mantém sua função de ser fiel aos fatos. Ela não precisa faltar com a verdade e nem distorcer nada. Basta repercutir o que diz o Ministério Público, este sim faz suas ilações travestidas de raciocínio lógico, uma peça de denúncia que ainda, na maior parte das vezes, terá que ser provada e confirmada.
O que ocorre é que, da forma como se dá a divulgação da notícia, para o cidadão consumidor emerge a percepção de que as acusações estão cabalmente provadas, ficando o julgamento facilitado, apenas para confirmar o que o senso comum já foi convencido. Argumentos aparentemente válidos mas, na verdade, não conclusivos, formulados para induzir em erro.
O que se pode acusar a Mídia Geral é a falta de consciência crítica, a
falta de exercício da arte da dúvida sobre o que se é controlado por outrem. O que se pode acusar a Mídia Geral é permitir alimentar a infantilidade emocional do culto à celebridade, neste caso com o sério agravante das celebridades pertencerem ao judiciário. Como é possível? O menor traço de raciocínio consciente trataria o tema como estupidez intelectual.
E os representantes do Ministério Público vem a púlpito bradar que a sociedade clama por isto, clama por aquilo. Qual sociedade?, pergunta-se. Esta, que se está a ver descrita, de repetidores de informação, da opinião publicada, dos consumidores da Mídia Geral. O sistema que os torna meros números do tecido social, e não seres humanos complexos.
A ação popular produzida não é popular. Concebida pelos líderes messiânicos encastelados no Ministério Público, teve o inestimado espaço proporcionado pela fraqueza das outras instituições, pelo desequilíbrio na ponderação de forças, e teve a ajuda repetidora da Mídia Geral para dar um “match” com o anseio de qualquer ser humano normal. A campanha, mais um dos propósitos que o Ministério Público lançou, acima das suas atribuições regulares, teve, sim, adesão importante da população. Visto que se está em uma circunstância provável. Mas não se vê conscientização nesse movimento. Está-se muito mais num ambiente de falsa crença em regras supostamente mais protetoras à Ordem Pública, e o consequente seguimento das lideranças redentoras.
Observem-se os telejornais da Mídia Geral. Praticamente todas as notícias são acompanhadas da manifestação de um especialista (“especialista” parece ser a profissão de maior sucesso da nação) ou da menção de uma pesquisa invisível, sobre a qual não se dá nenhum detalhe: “uma pesquisa revela que...”, e lá já se pseudamente fornece a credibilidade da informação.
Pois nem isto se vê neste caso. Porque não existe mesmo e inventar soaria falso por demais. Não se veem, por exemplo, dados que informem qual o percentual das “xis” milhões de pessoas que assinaram a ação popular realmente leram o documento. Ou qualquer outro dado referente a esta importante adesão, ou ao entendimento, a que se assentiu. A campanha de chamamento nas redes sociais, esta sim, todos observaram. Não se vê um sociólogo, por exemplo, ser guindado à condição de “especialista” numa matéria telejornalística, a investigar o fenômeno entre a adesão e sua relação com entendimento versus efeito manada. Tampouco vemos uma discussão, uma mesa redonda, uma audiência pública a entrar no mérito de cada uma das medidas da ação popular, se estamos num passo de progresso ou retrocesso. Reforça-nos ou rouba-nos a cidadania? Exemplos práticos de consequências? Nada. Somente alguns juristas se manifestam, com propriedade, diga-se, muitos em publicações especializadas e para iniciados.
E a Sociedade, como ficou mesmo no tema, e na sua razão? A interpretação do exposto parece levar a inferir que os signatários da ação popular, e mesmo a população em geral, não conhece o que exatamente é proposto pelo Ministério Público, e é ignorado pela Mídia Geral, que não traz a profundidade do assunto, seja por falta de interesse pessoal por parte de seu consumidor cidadão, seja por seu interesse político-econômico próprio.
Entretanto se, ao contrário, a Sociedade entendeu e sabe o que assinou, como quer apregoar o Ministério Público, a questão muda completamente de figura. Vê-se o negativo da pintura. A ser assim, todos coadunam explicitamente com o reacionário, o antiquado, o obsoleto, o fanatismo, disfarçados todos eles.
O iluminismo e a democracia perderam a vez. Quais as opções? Ou a Sociedade conhece muito da história mundial, ou a Sociedade não conhece nada da história mundial. Uma última visada na obra e ele ficou com a segunda.