Houve uma época em que eu não me preocupava tanto
“ E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.
(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.) ”
Carlos Drummond de Andrade
Quando vi que as mesas amarelas do bar pareciam um mar de sol à minha frente, me dei conta de que realmente estava bêbado. Ah, aquelas mesinhas de plástico todas organizadas – cada qual com dois ou três conhecidos ou desconhecidos que tomavam suas cervejas - se misturavam em minha mente como um grande, um imenso lago dourado. Então, afastei minha cadeira e fiquei no canto, só observando.
Heleno, o magrelo que estava sentado na mesa próxima, arrastou a cadeira com barulho, chegou perto de mim e disse: “Você quer que a gente te leve pra casa? ”. Eu olhei para ele, tentando abrir os olhos o máximo que pude e falei: “ Eu não tenho mais casa”. Outro amigo, o Paulão boca-suja, rindo e batendo a mão na mesa, disse: “E quem aqui tem casa? ”. Heleno olhou para ele, depois para mim e para o dono do bar e afirmou que era certo que todas as nossas casas eram financiadas pelo governo, não era? Eu me virei para eles, com a cabeça girando em círculos, e argumentei que não foi bem aquilo que eu quis dizer. Eles se entreolharam cúmplices, sabendo que não foi aquilo que eu quis dizer, mas disse.
Numa mesa ao lado da porta duas moças e um rapaz, distraidamente, olharam para nós como se olhassem para uma fauna antiga de seres que discutiam questões com as quais eles não estavam preocupados. Acredito que todos eles tenham casa: a casa de seus pais. Nós, que já éramos pais, mas ainda não somos avós, sentíamos como se não tivéssemos casa. Por que casa, eu pensava, era onde a gente podia recostar nossas cabeças e descansar no colo de uma mãe ou nos braços de um pai.
O dono do bar saiu do balcão, olhou desconfiado, transitou entre as mesas, passou pela garçonete e pediu que ela cuidasse do caixa. Ele se sentou na minha frente e disse: “Problemas em casa de novo, meu caro camarada? ”. Eu fiz que sim com a cabeça enterrada nos ombros. Futucando meu peito ele confidenciou: “Ainda bem que eu não tenho casa, nem mulher, nem filhos. Moro aqui no bar, cara! ”. Tentei sorrir olhando para ele. Não conseguia nem sorrir. Apenas quase-abri a boca e balbuciei: “Ân hã” e abaixei o queixo até ele encostar no peito. Fiquei balançando a cabeça e pensando.
Pensava que a gente mora mesmo é dentro da cabeça de outras pessoas que já gostaram ou que ainda gostam da gente. Dentro da cabeça e do coração destas pessoas é o lugar onde a gente mora. Ali, moramos muito tempo. Até não mais existir cabeça, nem coração de ninguém. Pensava nisso de olhos fechados. A boca também. Seu eu abrisse a boca vomitaria nos sapatos.
O magrelo Heleno era o mais sóbrio de nós três. Voltou para sua mesa levantando o dedo e Marilu, a garçonete, veio de novo, trazia mais uma gelada. Trouxe também uma dose para o Paulão. Deixou sobre a mesa com tanta força que fez derramar um pingo daquele álcool em cima da estampa amarela. Paulão entornou de uma só vez e falou gritando: “Traz outra. Vou beber por mim e por ele, lá. Aquele já tá derreado, o coitado. Só resta agora ou chorar ou ficar brabo”. Olhei na direção dele, tentando abrir os olhos, novamente. Dessa vez nem consegui. Mirava pelas frestas dos olhos e falei: “Não vou beber, não vou ficar brabo, nem chorar. Me deixa aqui, descansar um pouco”.
Enquanto isso, uma mosca alvissareira zumbizava na minha cara. Eu tentei derrubá-la com um golpe de direita, a seguir um de esquerda. Daí, Heleno veio com as duas mãos abertas e Pá! A mosca caiu estraçalhada dentro do meu copo vazio. Ele saiu ligeiro e voltou com uma sacolinha onde eu aliviei meu estômago. Na parede, o chiado da tv. Em algum lugar lá fora minha mãe estaria inocentemente olhando para a dela.
Uma vez minha mãe me contou que a quantidade de cachaça do mundo depende dos fabricantes e dos comerciantes. Mas beber, meu filho, só depende de você. Ela dizia isso. Eu podia ver que seus olhos tristes se alargavam e ficavam grandes, grandes, tentando abarcar toda a minha situação. Eu acreditava nela, mas eu não acreditava que parar de beber dependia só de mim. Dependia de muitas outras coisas. Até da minha mulher, quem sabe? Talvez ela soubesse. Ela dizia que eu só pensava no meu emprego e nos meus amigos. Acho que nesse ponto ela estava enganada. Nunca pensei a sério no meu emprego ou nos meus amigos. Eles são apenas necessários para segurar a barra da vida. No que eu pensava mesmo, de verdade, era no que eu ia fazer, como ia me virar para cuidar dos meus filhos e das minhas dívidas. Quando não encontrava resposta possível, aí sim, eu corria para a ilha deserta do bar, para os amigos do álcool. Ou ficava até mais tarde no serviço. Mas, nenhum nem outros eram suficientes para me fazer esquecer os problemas.
Houve uma época em que eu não me preocupava tanto. Foi quando a conheci. Eu me considerava velho demais para passar apenas uma noite com alguém. Eu queria passar uma vida inteira. Estava sóbrio na ocasião e gostaria de estar bêbado como Charles Bukowski, no entanto estava mais sóbrio do que Carlos Drummond de Andrade e recitava Cacaso: “Meu amor e eu nascemos um para o outro, agora só falta quem nos apresente”. Duas garrafas de cerveja nacional cumpriram a missão do cupido.
Tomei uma atrás da outra e de onde estava percebi que os olhos dela brilhavam mais que os das outras. A nossa troca de olhares se tornou troca de afetos. Foi aí que tudo começou. Alguns meses e garrafas depois eu estava casado. Recém chegado do interior, do meu interior. Saindo para fora e encontrando a vida. Eu era um tímido, um desconhecido até para mim mesmo. Mas, naquela época foi tudo muito bom. Depois vieram os horários rígidos, os ciúmes; os filhos que são o único saldo positivo desta conta viva. Eles são como amigos navegantes que atravessam o mar de tempestade da vida.
As pessoas falam ou escrevem muita coisa quando falam de amor. Eu só poderia falar dos meus filhos, se eu fosse um cara que falasse de amor. Mas, eu falo pouco e escrevo menos ainda. Às vezes, eles param suas brincadeiras de criança e olham para mim tentando adivinhar o que eu sinto. Como sei isto? Eu sinto. Sinto tanto que me engasgo em lágrimas silenciosas. Algumas vezes sinto tristeza por tê-los encontrados no meio desta crise. Desta crise que somos a mãe deles e eu. Ela e eu entrando na meia idade e o país entrando em recessão.
Entretanto, no momento, estou tremendo e estou sozinho no meio da multidão do bar. Os amigos estão do outro lado, bebendo, fumando e respeitando o meu silêncio. O Paulão tomava a quinta dose seguida. O dono do bar olhava sorridente. Um prato de petiscos dividindo com mosquitos a atenção dos clientes. A garçonete transitando para lá e para cá servindo bebidas e sorrisos para os mais afoitos. Eu, só no meu canto, esperando, esperando, até que ela chegou.
Naquele ambiente de música, risos e fumaças e uma poeirinha que revoluteava na sarjeta lá fora, de repente tudo parou. Parou como numa cena de filme. Ela chegou na porta do bar, pôs as mãos na cintura e gritou rouca: “Seus filhos querem te ver, vivo! ”. Todos olharam para ela arregalando os olhos, inclusive eu. Depois de arremessar os chinelos contra mim saiu correndo descalça rua acima.
Ainda fiquei sentado mais um instante até que começaram a chegar as mensagens, as imagens de rostinhos tristes, sombreados, chorando. Existe, alguém sabe me dizer se existe no mundo algo mais triste do que o choro de uma criança? Eu não saberia dizer. Nunca soube dizer. Nem minha situação é tão triste quanto. Nem a situação do país é tão triste quanto uma criança chorando. Isso comove um pai. Um pai que eu queria ser.
Então levantei-me vagarosamente, segurando o estômago. Paulão e Heleno quiseram me acompanhar e eu gritei: não! Deixei uma nota na mão de Marilu e cambaleei para fora. Respirei o ar úmido da noite. Fui até o carro. Suspirei fundo e girei a chave. Dei a partida e saí lentamente. No bar, algumas pessoas olhavam indiferentes. Ainda rodei cinco quadras antes que o carro parasse de vez. Bati as portas e fechei-as. Saí caminhando rápido e alto. Cada vez mais rápido em direção a casa.
Cambaleando pela calçada fui me aproximando. Já podia ver o portão e o muro. Vi o jardim e o cachorro dando pulos. Depois vi as janelas e a parede lateral da casa. Eu pensava que eles estivessem todos enfileiradinhos em frente à porta como quando ficam no Natal esperando presentes. Mas, não. Apenas uma lâmpada amarelada na varanda. Ela na porta. O roupão mal ajeitado no corpo e os cabelos caindo no rosto. Uma cena deprimente. Eu tive pena dela como tenho pena de mim. Creio que ela tenha chorado como eu, decerto, chorarei.