DOIS ESTRANHOS NA PAISAGEM

A paisagem desfilava vertiginosa perante a janela de Paulo, o queixo apoiado na mão, reflexivo, o pensamento vogando bem longe dali. Encontrava-se na carruagem – restaurante, bebendo um gin tónico, seu vício de sempre.

A viagem no comboio Alfa iniciara-se meia-hora atrás e rapidamente fizera jus ao seu nome, o rápido Lisboa – Porto. Em cerca de duas horas faria trezentos quilómetros, aproximando assim essas duas cidades.

Ao fim de alguns minutos, olhou lentamente à volta até que seus olhos estacaram nela. De pequena estatura, rosto oval, cabelo escuro cortado à pajem, a sua beleza cativara-lhe a atenção.

Ela também olhou rapidamente para ele, depois fixou-se no copo de sumo de laranja, que sorvia lentamente. Paulo desviou de novo o olhar, focando a paisagem em movimento rápido.

Alguns minutos depois, ela passou por ele e nisto sofreu um ligeiro empurrão por parte de um passageiro distraído, fazendo-a chocar com Paulo e esfrangalhar o copo em cacos no chão. Atrapalhada com a situação, pediu-lhe desculpa pois entornara a bebida sobre as calças dele, numa situação comprometedora.

- Desculpe, não tive culpa.

- Não tem importância – respondeu-lhe Paulo. Entretanto apresentou-se.

- Paulo Branco, representante da Baiersdorf em Lisboa. – Ela apertou a mão que ele lhe estendeu. – Chamo-me Iolanda Ribeiro e sou advogada numa firma de causídicos no Porto.

- Muito prazer. De viagem?

- Pois parece óbvio, não? – Ele coçou a cabeça, atrapalhado com a gaffe, fazendo-a rir.

- Percebo que está nervoso, mas talvez não haja motivo para tal… ou há?

Ele riu para disfarçar. Olhou-a melhor. Era de facto bem bonita, das mais bonitas que encontrara na sua vida.

Isso fez-lhe lembrar o problema que tinha entre mãos: enrolara-se com uma colega da empresa, era separada e tinha dois filhos, coisa que ele desconheceu durante três meses de relacionamento, de forte intimidade. Depois descobriu e reagiu mal, afastou-se abruptamente dela, deixaram de se encontrar.

Agora sentia um certo desconforto, pois o peso na consciência não o deixava dormir. Ela, muito chorosa, contara às colegas e agora era apontado a dedo. Ele nem sabia se ela tinha contado tudo direito ou enviesara a verdade.

Permaneceu em silêncio durante algum tempo. Estavam ambos de pé, o que se estava a tornar algo desconfortável. Iolanda então convidou-o a sentar-se. Paulo continuava de semblante carregado, o que despertou a curiosidade dela.

- Preocupado, hem?

Paulo hesitou em responder, depois acabou por se confessar, contando, com algum detalhe, o que o andava a preocupar. Estava perplexo com o que agora acontecera. Sem a conhecer de lado algum, Paulo contara-lhe detalhes da sua vida particular. Porquê?

Iolanda olhava-o, tentando compreender a situação.

- Porque fugiu dela? Afinal gostava ou não da sua colega?

Paulo não respondeu e o silêncio disse tudo. Ela olhou-o, percebendo que ele queria aventuras mas não responsabilidade. Por nada deste mundo o admoestaria ou lhe daria conselhos, era já crescidinho.

Após algum silêncio, Iolanda acabou por falar:

- Sabe, Paulo? Já percebi tudo. O mundo está cheio de irresponsáveis, homens que usam e deitam fora, também já passei por isso e fiquei vacinada. Embora não fosse a minha intenção inicial, dou-lhe um conselho: se de facto gosta mesmo dela, procure-a e diga-lhe aquilo que o coração dita. Caso contrário, viverá sempre com essa pedra no sapato.

Ela olhou-o com alguma indiferença e de seguida levantou-se, virando-lhe as costas e dirigindo-se para o seu lugar de origem.

Paulo ficou surpreendido com a impulsividade dela, mas percebeu que sendo mulher, tinha-se colocado na pele da outra.

Depressa chegaram ao Porto e ele perdeu-a de vista. Procurou na gare mas não mais a viu.

Enquanto espreitava para a rua à procura de um transporte, pensou no que teria acontecido se não tivesse contado tudo à advogada... A história de ambos poderia ter tido um final diferente.

Resignado, apanhou um táxi para o hotel, com a imagem de Iolanda no pensamento.

Ed Sheeran - Fall

https://www.youtube.com/watch?v=hMoG5KhAgmk

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 11/08/2019
Reeditado em 12/08/2019
Código do texto: T6717759
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.