Tonha

Era uma fotografia e uma imagem linda, lembrava as antigas aias dos senhores de engenho. Seu ar quase angelical dava-lhe uma aura de confiança inegávelmente pueril. Não era atemporal, pertencia a um tempo especifico naquela era, mas era somente uma foto que lhe trazia a lembrança de uma outra doce criatura. Ela lembrou-se da senhora vizinha que sentava-se na extremidade do sofá perto da porta de casa para observar a rua nos finais de tarde. Seu nome era Antônia, Tonha como era carinhosamente chamada por todos, uma senhora com uma suavidade no olhar e nos gestos ímpares, seus cabelos já a muito tempo totalmente brancos e sempre presos em duas trancas ralas ou um rabinho de cavalo, ela não sabia ao certo sua idade, fora registrada já mocinha numa pequena cidade no sertão baiano, e tinha na pele negra a inegável marca do tempo e do trabalho na roça. Ela gostava de sentar-se com ela na porta de casa e conversar. Era delicioso sentir a bondade e a inocência dela nas histórias de um mundo que não existia mais. Tonha tinha lembranças de acontecimentos históricos que denunciavam uma idade bem mais avançada do que os seus 85 anos de certidão. Lembrava de como sua mãe falava do tempo de escrava no engenho. Era uma vívida memoria e podia descrever com muita propriedade acontecimentos da época que a historia documentada podia comprovar. Era quase hipnotizante conversar com ela, poderia ficar horas conversando com a velha senhora. Sua voz era um tanto incerta pela idade, as vezes falhava e palavras lhe fugiam com muita frequência. Tonha emanava uma energia leve, radiosa e iluminada, estava sempre bem ajeitada com a roupa impecavelmente limpas e muito cheirosa! e como ela cheirava bem! alfazema, sim,com certeza era alfazema. A muito o perfume lhe trazia uma saudade indescritivelmente misteriosa. Ela tinha um jeito quase brejeiro e ligeiro, seus olhinhos já tomados pela opacidade do tempo não deixavam duvidas de sua vivência. Sorria gostoso colocando as mãos magras e finas hora na face hora na boca, como que envergonhada de algo impróprio. Não parecia somente inocente, ela o era, totalmente. Não era alfabetizada, mas possuía leitura das coisas do mundo numa praticidade, simplicidade e coerência incríveis. Seu rosto era fino e enrugado, e sua pele escura e seca. Não havia maldade em seus dias, palavras ou ações. Era impossível para ela não ir vê-la todos os dias.Seus encontros a deixavam feliz, elas riam juntas e tomavam cafe em copos de massa de tomate. Ela era linda, disso ela tinha absoluta certeza. Tonha despertou nela uma admiração respeitosa por idosos. A fragilidade, a sinceridade e a incrível carga de vivências e experiência que podiam ser sorvidas por quem quer que se permitisse ouvir e sentir o que eles tinham a dizer e ensinar. Tonha vivia num mundo quase só dela, e ela nunca em momento algum a viu zangada ou chatiada ou triste. Ela era capaz de contar sua vida difícil na roça sorrindo, e de como sua trajetória solitária a tinha feito tão forte e resiliente, características essas impressas em sua face, palavras decididas e mãos falantes. Ela olhou a foto da web novamente. Seu coração ficou miudinho lembrando que a sua mudança para outro bairro as tinha afastado, aquela foto a lembrava muito de uma forma pungente e poética. Os dias e as novas tarefas também rarearam seus encontros até que um dia descobrira que ela não estava mais entre nós, não mais de forma física. Ela ia vê-la com frequência e conversava com ela segurando suas mãos mesmo quando ela, frágil e acamada não mais falava, ela sabia que Tonha sentia sua presença apertando suavemente sua mão. Quis o tempo ou o destino que ela se fosse sem que ela presenciasse o momento. Existiria para sempre um pedacinho de sua memoria dedicada a ela, sempre e sempre se lembraria dela com todo carinho de que era capaz. Seus olhos marejaram e um mar de lembranças envoltas em brisas suaves com cheiro de alfazema vieram a tona, mas nada que se comparasse com os fins de tarde regados a café e doces memórias. Abençoada Tonha, com certeza estava no paraíso rodeada de querubins ouvindo suas historias.

Para Tonha, que além de exalar amor era a pessoa mais lindamente iluminada, suave e inocente que conheci, meu amor e admiração eternos.

LadyM

08.08.2019