QUERER... E NÃO QUERER !

QUERER... NÃO QUERER !

"Quem ama a Vida como ela é /

não vá querer quem não lhe quer"...

MARTINHO DA VILA (trecho)

Geraldo, já de meia idade, livrara-se ao longo da Vida de vários compromissos onerosos ou incômodos e agora podia desfrutar de algumas manhãs no bar do português que ficava perto de sua casa, "kittinette" de solteiro sem cachorro, papagaio ou mulher... o que é quase a mesma coisa ! Vivia de "bicos", de "expedientes", de "trampos" temporários, ou seja, topava qualquer coisa, encarava todo serviço que surgisse. Chegara cedo à mercearias, bar, padaria, lanchonete e o que mais comportasse. Era um típico mercadinho galego, tinha de tudo, por pouco não vendia carnes. O extenso balcão alto -- de crianças só se viam os olhos -- vivia ensebado, negro de poeira adormecida e "cortava" o salão de uma parede a outra. No centro uma passagem encoberta pela tampa do balcão, onde o dono atuava, avental secular que o taberneiro do Almirante "Basco d'Gam" deixou como herança aos pósteros.

Geraldo abancara-se num canto escuro da parte do bar com mesas e cadeiras antigas, de madeira vermelha. Seu velho amigo chegou pouco depois e aceitou o convite para fazer-lhe companhia. Geraldo tomava cerveja preta, saudosista, de nome Malzbier, que alguma fábrica oportunista desenterrara do distante Passado. Luís bebia refrigerante com pastéis de Belém, era muito cedo para coisas mais "pesadas". Eis que de repente um leve perfume de cerejeiras em flor evolui pelo ambiente, junto com a figura feminina que o portava. Geraldo levou um susto... aquilo não era possível, seria coincidência demais !

Emudeceu, cravou os olhos ansiosos na mulher no balcão, de costas, e a esquadrinhou de cima abaixo. Conhecia cada centímetro daquele corpo, dividira sua cama com êle por 4 ou 5 anos. Ela sentiu, percebeu o olhar inquiridor e virou-se lentamente. O coração de ambos bateu acelerado, espanto e furor na mesma proporção. Já nãso se viam fazia uns 3 anos. Aproximou-se resoluta da mesinha, "faca nos dentes":

-- "Bom dia... então é você" ?!

-- "Era um bom dia... até agora ! Então, é você mesma ! O que faz por aqui" ?!

-- "Meu "Bom Dia" foi para o cavalheiro aqui... (e sinalizou com os olhos e leve inclinação da cabeça) você não merece nada, tenha certeza disso" !

Luís sentiu a cadeira "queimar", fôra colocado de graça entre "2 fogos"... ameaçou retirar-se ! Tarde demais, o amigo não deixou, para azar dele.

-- "Não, por favor, fique Luís... quero que você conheça a 'Rainha da Desgraça", a "filha" de Satanás, o "inferno" em carne e osso" !

-- "Ora, ora... estás mais educado agora ! Porque não está gritando ?! Não sabias falar de outro jeito ! Era o dia inteiro sentado, ouvindo Gal Costa e tomando cerveja. Já cansou dos "Novos Baianos" ? Aquilo era uma tortura" !

As vozes se alteraram, o pessoal do "outro lado" -- cadeiras e mesas de metal -- jovens mães com filhos indo indo pra escola e recheando de doces as mochilas infantis olhavam curiosas o inusitado "bate boca" matinal. Luís pensou em se esconder sob a mesa, mas era papel feio demais para um homem. Geraldo quase foi a nocaute, as verdades doem e aquelas, ditas assim, lhe pareceram "pedradas". Levantou a voz, levantou-se junto, narizes quase colados:

-- "Olha quem fala... a 'Deusa da Limpeza", não podia ver uma almofada fora do lugar, uma gota de cerveja sobre um móvel, uma toalha no sofá. Passava o dia reclamando. E não sejas injusta: as poucas vezes que fiquei em casa era porque estava sem emprego. Se passasse esse tempo na rua reclamarias do mesmo jeito. Quando casei não sabia que você era maluca... MA-LUUU-CAAA" !!!

Agora sim a bodega, a "birosca" inteira ouviu, Geraldo dera um sonoro berro, de estremecer garrafas na mesa. O português aproximou-se, "livrando a cara" do velho freguês:

-- "Pur favôire, senhora, dê um fim nessa perlenga, para não incomodáire meus clientes" !

-- "Quem o chamou na conversa ?! Ponha-se no seu lugar que é atrás do balcão" !

Aí não prestou... o galego -- que já não tem papas na língua, por tradição -- "subiu nas tamancas" e, usando o lápis da orelha esquerda como navalha, ponta no pescoço da desaforada (na outra orelha galhinho de arruda) "abriu o verbo" e deu o ultimato:

-- "Senhorinha, olha q' está na minha casa... comporte-se ou a ponho porta a fora a "bassouradas" !

Geraldo, mãos postas "em oração", reforçou o pedido:

-- "Alice, "pelamordedeus", pára com isso, não há mais nada para falarmos, Por favor, saia" !

-- "Vou porque quero... mas vê se não atravessa mais no meu caminho ou não respondo por mim"!, e sumiu.

-- "Não te disse, Luís, você viu ?! É uma "víbora" !

-- "Geraldo, é o que você não disse que me preocupa... (e espantado com todo aquele "circo", completou) você ainda a ama, Geraldo e, ela, a você, até mais ! Vocês terão que resolver isso algum dia" !

Curiosamente há casais que levam há casais que levam a Vida entre tapas e beijos. Porque casam ?! Ninguém sabe !

"NATO" AZEVEDO (em 7/agosto 2019, 17hs)