Uma nota para oportunidade

Fazia gestos e festas em seu sopro de luz, a cada acorde um segredo íntimo a se desvendar. O saxofone alto era um dos últimos vestígios de sua infância pobre no Vidigal, presente de seu pai, operário do cais do porto. Que tempos remotos! Hoje em sua velhice desamparada Josué, morador de rua, preocupava-se apenas com a luta diária pela sobrevivência. Aos 55 anos sua música era seu ânimo de vida, seu blues um alívio para os dias ao relento. Pele negra, roupa amarrotada e bochechas infladas a divagar contra o marasmo nas estações do metrô.

A cada fim de tarde um Josué presenteava-se com um café na confeitaria Colombo no centro do Rio! Já ao cair da noite a Lapa era seu destino certo, e era nos bares deste recanto boêmio que Josué retirava seus maiores trocados. As sinuosas notas de seu sax seguiam a embalar os corações dos amantes, a abrandar a fúria dos bêbados. Ao término aplausos e passar o chapéu. Com sorte ao final de uma noite Josué arrecadava o suficiente para se hospedar em algum hotel barato! Do contrário segurava as moedas do desjejum matinal e tocava para lua em alguma praça. Em sua companhia apenas dois punhais ocultos na cintura, sua única segurança contra a voracidade noturna.

Também era de seu costume caminhar pela orla, prosear com moradores, rir e fazer graça! Muitas vezes era graças a caridade alheia que Josué fazia sua única refeição do dia! De seu passado sabia-se apenas que fora casado com uma Polaca, fora pai de quadrigêmeos e ajudante de caminhão. Todavia, os ares da vida comum logo se findaram devido a cor de sua pele e o vício por cachaça. Discriminado pela família da mulher e abandonado por ela Josué, rapidamente, encontrou nas ruas um refúgio para o seu ópio!

Certa noite na praça Tiradentes, a fragilidade do sono de Josué fora interrompida pela arruaça de alguns jovens ricos e vândalos. Risos e vozes embriagadas enquanto atiravam álcool no corpo do débil mendigo. Entretanto, Josué levantou-se, subitamente, a sacar as duas facas na cintura e os confrontar com seu brado de guerra! Fora este episódio o prenúncio do seu asco as classes abastadas.

Josué retomara a mesma rotina de sempre, as tardes a esmaltar as viagens de metrô, e à noite a encabeçar os bares da agitada vida noturna carioca na Lapa. Todavia, naquela semana a sorte parecia agracia-lo, pois sequer uma noite faltou-lhe recursos para pagar o quarto de hotel. E fora justamente numa destas noites efervescentes em que nosso saxofonista conseguira o inusitado de ter seu talento reconhecido por um membro de uma aclamada banda de Jazz. Logo surgira a proposta de gravar um CD e sair em uma lucrativa turnê! Tamanha fora a sua euforia que era preciso comemorar.

_ Garçom, uma dose para enaltecer o som!

E fora com esta mesma euforia que Josué seguira os meses seguintes, durante as gravações, com os ganhos obtidos já não era preciso escolher qual das refeições fazer, ou, mesmo arriscar-se ao relento nas praças. Contudo, com as boas novas vieram também péssimos hábitos. E assim as chamadas doses para enaltecer o som tornaram-se cada vez mais frequentes. Logo, às noites antes destinadas em sua maioria ao trabalho voltaram a ser sinônimo de boêmia. Sem os cuidados pertinentes a idade não demorou para que Josué desenvolvesse uma tosse crônica e começasse a faltar ensaios, ou, chegar quase sempre bêbado!

Todavia, o talento de Josué parecia minimizar seus impulsos e seu lugar na banda fora mantido em respeito a qualidade e sentimentalismo do seu som. Apesar da consideração obtida entre os músicos Josué ao término das gravações fora, subitamente, acometido por uma forte gripe, que sem o devido tratamento logo tornou-se uma pneumonia. E desta forma seu destino fora selado, com os pulmões enfraquecidos seria impossível para Josué acompanhar a banda em sua turnê! E dos dias abastados sobrara somente o prestígio, pois dinheiro mesmo nosso saxofonista não conseguira juntar. E assim fatalmente as ruas tornaram novamente a ser o seu destino. Pobre Josué, uma brecha para sua doença e seu deslize custou-lhe o emprego! Restava somente uma saída, uma curva árdua frequentemente ansiada pelos fortes... Josué buscou tratamento! E há quem diga que tempos depois seu sax voltou a ser ouvido pelas ruas do Rio de Janeiro. Pois é, nosso saxofonista voltara a estaca zero. Acompanhado sempre por seu Blues à espera somente de uma nova oportunidade!

Buendia
Enviado por Buendia em 07/08/2019
Código do texto: T6714922
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