Conto das terças-feiras – Anunciação e Lili, as misteriosas
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 6 de agosto de 2019
A rua parecia estar em festa, novos, isto é, novas vizinhas estavam se mudando para a casa amarela, propriedade que fora de dona Laurentina Melo, senhora de respeito e muito religiosa. Uma casa antiga, mas de gosto requintado. Havia tempos que ela se encontrava fechada com a morte de sua proprietária. Briga judicial pela herança havia impedido sua venda por mais de dez anos. Resolvidas as pendências judiciais a casa fora adjudicada ao sobrinho Marcos Melo, filho de um irmão de dona Laurentina. A dona da casa amarela, por infertilidade do marido, não tivera filhos.
Marcos Melo, estabilizado financeiramente e morando em belo apartamento à beira-mar, não tinha uso para o que acabara de receber como herança, resolvera, de pronto, colocar a casa que fora da tia, à venda. Não quis nem mesmo saber quem a compraria, passou procuração para uma corretora dando poderes à concretização da transação. Assim, mãe e filha, dona Maria da Anunciação e Lili passaram a ser as novas proprietárias da casa amarela, localizada na pacata Rua do Sossego.
Os primeiros dias das novas moradoras da rua, que diziam ser tranquila, foram sem sobressaltos, apenas dona Maroca era vista com frequência na janela de sua casa, espreitando as recém-chegadas. Com certeza, essa senhora estava indignada com ausência de pessoas na janela da casa amarela, ninguém saía de casa, coisa esquisita, pensava a vizinha curiosa. Era costume de as mulheres residentes naquela rua passarem boa parte do tempo a conversar a partir de suas janelas. Falavam de tudo, dos maridos, das empregadas e de alguma vizinha, quando esta não estava em sua janela. Dona Maroca era a primeira a se fazer presente na reunião entre as fofoqueiras da Rua do Sossego.
Dona Maria da Anunciação, apesar das marcas de tempo bastante visíveis no rosto, denotava ter sido uma mulher muito bonita. Dona Lili, dentro de seus vinte e seis anos, puxara à mãe. Corpo perfeito, alta, nem magra nem gorda, proporcional, de rosto delicado, lábios carnudos, que eram ressaltados pelo batom vermelho que gostava de usar. Olhos brilhantes e cabelos sempre bem penteados, causava inveja a quem por ela passava. Os homens a viam passar e a acompanhavam com olhar discreto, principalmente os casados.
O comportamento comedido das duas senhoras instigava os moradores daquela rua. Saíam pela manhã logo cedo, e só voltavam à noite já dormida. Nem mesmo aos sábados essa rotina era quebrada. A maestrina das fofocas não estava contente, precisava de um contato com as meninas da casa amarela como Maroca, pejorativamente, se referia às duas mulheres. Sem dar conhecimento às demais amigas da rua, esta senhora resolveu se travestir de detetive e seguir as “meninas”. Determinado dia, bem cedo acordou, chamou um táxi e deu ordem para o taxista acompanhar o motorista do carro, que cotidianamente levava e trazia as duas mulheres.
O percurso foi longo, chegaram a uma rua discreta e a uma casa ampla, de vários cômodos e muitos carros na área externa, indicativo de que ali acontecia algo anormal. A fofoqueira estava excitada, descontrolada mesmo. Vociferava com o motorista do táxi:
— Não é possível, não permitirei que em minha rua more pessoas que frequentam um lugar desses!
O motorista aturdido e sem compreender o que a velha e mal-educada senhora dizia, perguntou:
— O que está acontecendo, a senhora está passando mal?
Tal pergunta deixou ainda mais dona Maroca furiosa, colérica. Deu uma guarda-chuvada na cabeça do taxista, pedindo-o para entrar no pátio onde estavam estacionados os carros. Ela queria saber o que estaria acontecendo lá dentro daquele ambiente sem pudor.
Preocupado que algo acontecesse se atendesse ao pedido da raivosa senhora, o homem pediu-a para descer e verificar por ela mesma.
— Você não é homem, não? Perguntou asperamente a endoidecida mulher.
— Nessas horas eu não sou, quero permanecer homem vivo, respondeu ele.
A mulher desceu, caminhou alguns passos à frente e caiu desfalecida. O taxista, que já se preparava para deixar a mulher ali, correu e com muito esforço colocou a reclamante em seu carro e rumou para o hospital mais próximo. Pressão alta foi o diagnóstico médico. Depois de recuperada, os médicos perceberam que a velha senhora havia perdido a memória, não se lembrava de mais nada do que acontecera, nem mesmo onde morava. Procuraram o taxista, ele já se escafedera, com medo de complicações para o seu lado. A “detetive” Dona Maroca foi entregue a um lar para idosos, mantido pelas irmãs de caridade e o mistério da casa amarela não foi desvendado.