A NÉVOA

- Gritas e o eco responde por trás do monte mais próximo – contava ele com uma certa bonomia ao amigo.

Mondim, aldeia serrana, perdida na separação,algures entre o Minho e Trás-os Montes, lugar ancestral e berço da sua família pobre e dasafortunada.

Eles todos faziam parte da plebe,na categoria de criaturas esquecidas, população anónima que, no entanto, percorrera os caminhos do Diabo, pisara cardos até fazer sangue e vivera uma saga cruel e violenta toda a vida.

- Como animais, como bichos! – partilhava ele, atónito e desconfiado.

A Avó era a Maria Lombeira, destemida e brutal que levantava a mão a todos os que se atravessavam no seu caminho mas que se sujeitava como cadela obediente e medrosa às investidas do homem quando regressava ébrio, a altas horas no negrume da noite e a emprenhava num abrir e fechar de olhos.Criaram os cinco filhos ao deus dará.

- Abre as pernas, abre as pernas , mulher ou encho-te de …

Mandaram mesmo os filhos mais velhos , a mãe e o tio de Armando para uma eventual e certa desdita, a desgraça anunciada , trabalhar de sol a sol no solar de um empregador impiedoso e abusador que os moera de pancada nos confins da serra onde eles chegaram descalços e famintos depois de passarem a noite ao frio e ao relento, empoleirados nas árvores para não serem devorados por alcateias de lobos,desvairados à cata de alimento e que criara um buraco tão negro e gigante que ainda hoje ambos não conseguiam encarar, tal fora a força do trauma e a memória sangrenta da dor e do desespero.

A Mãe de Armando para sobreviver tornara-se ela própria numa espécie de fêmea de javali, pesada e agressiva que nos acessos de histeria, atirava panelas para acertar nos próprios filhos quando eles por qualquer motivo lhe buliam com os nervos, não conseguia deixar de ferver em pouca água.

Armando fizera-se homem aos empurrões,fora vítima de maus tratos e, no entanto, conseguira remodelar as suas atitudes e comportamentos, desprender-se do destino a que os antepassados se mantiveram prisioneiros e evoluir, melhorar e ser mais.Quase por milagre.Era um rapaz alto, magro mas vigoroso que deixava as raparigas e mulheres aguadas e húmidas.

Naquele tempo não havia cruzadas contra a violência doméstica ,o assédio sexual e a proteção dos direitos dos menores.

- Vamos os dois para fora, trabalhar na pesca, pelo menos para longe disto tudo?

Aos vinte e poucos anos,já tivera o seu quinhão de aventura e má sorte e talvez por isso prezasse tanto a sua amizade com o Cosme companheiro desde a infância e o que com ele enfrentara a morte nas águas endemoinhadas junto ao estreito de Gibraltar na pesca profissional, ambos a soldo de um armador marroquino.

- A borrasca advinha-se.Estamos bem tramados!

Na tempestade que se abateu de repente, e que dilacerou a embarcação, quebrando-a ao meio eles aguentaram-se os dois, agarrando-se a um destroço ao acaso , lançado ao mar.Mas um mastro pesado embatera nas costas do Cosme, fraturando-lhe a coluna e deixando-o paraplégico.

Encontrava-se com o amigo todos os dias , depois do almoço num pequeno café junto à ria em Aveiro onde as famílias passaram a viver.

Nada se interpunha entre os dois e quando a neblina descia junto ao rio que se dividia e ramificava junto à foz, Armando empurrando a cadeira de rodas vinha com Cosme num passeio longo e vagaroso em que trocavam confidências, desnudavam a alma um ao outro e sentiam o calor da amizade para lhes dar um novo vigor e força para enfrentar novas lutas.Uma cumplicidade e confiança inquebrantáveis e raras.

- Hoje, vamos até à cidade dar uma volta? – pedira o Cosme.

Mas naquele dia, Armando tomara uma cola gelada, sentira-se mal, debruçara-se na berma do caminho para vomitar sobre a ria e de súbito, desequilibrara-se e caíra ao rio com um chapão prenunciador, desaparecendo num segundo nas águas lamacentas.

O Cosme clamou por ele em pânico e gritou desesperado por socorro, tentando apressadamente fazer mover a cadeira a que estava preso, sem remédio.

Vieram pessoas que mergulharam nas águas, vasculharam no lodo e debalde procuraram o corpo de Armando.Vieram mergulhadores, profissionais que colocaram finalmente redes a todo o comprimento, de margem a margem mas nada.

Ao fim de uma semana o corpo, já meio devorado pelos caranguejos foi descoberto preso a umas silvas que entravam pelas águas junto ao rio, num lugar bem afastado daquele em que ocorrera a queda.

A Mãe insistiu em vê-lo mesmo depois de outros já terem feito o reconhecimento.Talvez naquele momento, algo se tenha partido na sua alma sêca mas permaneceu lívida, estática sem verter uma lágrima, frente ao esquife.

Mas com o Cosme não foi assim tão simples.Durante meses ele regressava só e desamparado, mal conduzindo a sua própria cadeira de rodas no percurso que antes fazia com Armando.Sem justificação nem mote, voltava ao “local do crime” talvez na louca esperança de o fazer ressuscitar das águas ou de o ver assomar no meio do nevoeiro, lançando-lhe um:

- Olá!

Quer fizesse bom ou mau tempo, a chuva o fustigassse no rosto ou o vento soprasse hostil fazendo tremer e gingar o seu pobre e frágil veículo ele não desistia, mantendo-se fiel ao hábito.

Um dia com chuva torrencial, veio um jovem engenheiro condoído em seu auxílio, tentando levá-lo de regresso a casa.

- Deixe-me ajudá-lo.Não está tempo para andar na rua.

Noutro, uma assistente social estagiária interpelou-o e quis saber os contornos daquela história macabra.

O Cosme continuou imperturbável, a manter o seu compromisso de honra, a sua inabalável fidelidade para com o amigo, tragicamente desaparecido.

Uma estranha forma de exprimir que a amizade e o afecto indizível transcendia a vida e a morte e se prolongava para sempre…talvez… até à eternidade.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 05/08/2019
Código do texto: T6712909
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