CALENDÁRIO

Numa hora, estava numa Igreja numa missa em memória da Mãe que morrera há um ano.Noutra, irritava-se com o chefe no trabalho.Desesperava.Ressentia-se.

Mais à frente ria com amigos durante um jantar.Mais atrás deixava-se invadir pela tristeza calma e persistente.

“Para quê?Porquê?”

- A vida passa tão rápida.Não vale a pena darmos um grande peso à coisas – diziam-lhe amiúde.

Problemas sempre.Pequenas questões:solicitadores, advogados, conflitos de interesse na venda dos terrenos herdados.Suspeitas de doenças.Medos e terrores.

Planos de reforma a médio prazo.Viver no campo.Criar galinhas.Plantar, semear e colher.Grandes arrumações.Grandes trabalhos.

E o grande cansaço que se apoderava dele, imperceptivelmente… lentamente… “Que fazia correr David e envelhecer sem perceber bem o que acontecia à sua volta?”

Havia ameaças de guerra nuclear no extremo oriente, migrações massivas de refugiados, brexits e conferências fiasco.Casamentos e escandâlos.O Mundo a ruir por um fio…e cada um no seu casulo, indiferente, narcisista e egoisticamente alheio a tudo e a todos.Um karma de expiação ou mero instinto de sobrevivência?

E havia a Literatura e as idas ver um filme ou um espectáculo de teatro.A Arte.O regozijo!

Havia o insolúvel.Velhas decisões erradas que serviam de erosão a toda uma vida como um rio selvagem.Ou uma música fatal que não se desprende dos ouvidos e martela na cabeça,deixando-o exausto a um passo da loucura.

David descia à experiência ignóbil.Curtir a maconha no jaccuzzi com uma profissional.Aceder a uma massagem a quatro mãos com um casal sem preconceitos.Gozar com desconhecidos meio pedrado.Ressuscitar…Volver…Punir-se…Acusar-se.Perdoar-se.

As responsabilidades.Os compromissos.As grandes dúvidas.

-E você? Gosta de experiências novas?Avassaladoras?

Numa hora passeava na praia, imerso em projectos.Noutra acendia velas na casa escura.

Óbitos e nascimentos.Casamentos e divórcios.Os jornalistas como os grandes alcoviteiros da actualidade.

Apreensivo ele descolava-se do bulício, isolava-se e retraí-se.

Creme nas rugas, pastilhas para a tosse.Rotinas.

Voava do dia 1 de Janeiro ao 31 de dezembro com pouco para dizer.Arrancou decidido as folhas do calendário, foi até à rua e deixou-se ficar um minuto à chuva sem protecção nem nada.A senti-la cair simplesmente na sua fronha e a escorrer gelada… a ensopá-lo todo literalmente.

- Sinto-me vivo.Mas não posso dizê-lo nem escrevê-lo.Haverá sempre um pobre idiota que para mostrar que é muito esperto não se coibirá de achar o testemunho…autobiográfico.

- Manda essa gente dar uma volta!

-Volta agora para casa e toma um banho quente.É uma sensação indescritível.

A Mary Poppins regressara às salas no cinema.O ruído persistente do Futebol e das discussões estéreis prosseguia interminável, em quase todos os canais de televisão.A mesma treta.

E ele então reflectiu pesadamente em tudo aquilo, na sua vida e quis muito agradecer a uma entidade celeste o absurdo, o inexplicável e a diminuta importância que a humanidade afinal tinha no universo imenso.

A idade trazia isso.Uma certa frieza.Talvez a lucidez.A perplexidade também.Nada a fazer.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 03/08/2019
Código do texto: T6711462
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