UMA AMIGA NAS NUVENS

Ricardo atravessava um daqueles momentos que se consideram perigosos.Ritos de passagem, mudanças, crise…seguir em frente depois da tempestade mas antes da bonança.

Foi isso que o terá levado a aceitar dar aquela formação fora de portas exactamente nos Açores, ilhas atlânticas que ele ainda não conhecia nem desejava especialmente um dia visitar ainda que fossem consideradas uma beleza, um pedaço do céu, mistérios de um continente desaparecido há milénios e sobretudo um importante foco de atração turística.

Embirrava solenemente com a pronúncia que no entanto o divertia ao ponto de perversamente imaginar “o prato” que seria assistir a um filme pornográfico falado em açoriano…

A ilha era plana, suspensa, a atmosfera limpída e húmida e a pousada limpa e ampla.Ao jantar serviam uma enorme tábua de queijos deliciosos que deviam arrasar com os níveis de colesterol.

Mas ele não conhecia nada nem ninguém nem tinha nenhuma indicação de um bar ou boite e fora das horas de trabalho já sabia que o esperava a doce e amarga nostalgia.

Em compensação na manhã em que o táxi o conduziu ao Hospital enormemente comprido ele pasmou com a conflitualidade que pesava no ar, no trânsito pouco mas compacto, nos apitos e improprérios semi gritados e nos cruzamentos desertos que despoletavam corridas insanas para ver quem passava primeiro.

Lá conseguiu chegar e montar uma espécie de tenda onde avultavam dossiers, papeis e material didático no salão onde seria dada a formação.

Os formandos chegaram à hora e ele deparou-se com um grupo maioritariamente feminino de médicas e enfermeiras para quem o tema em causa “Apresentações Orais de sucesso”, falar em público, discorrer perante uma audiência era mais uma curiosidade do que uma necessidade formativa.

Isabel emergiu do grupo como coordenadora e foi ela que serviu de intermediária em tudo e o acompanhou no almoço destemperado servido na cantina do Hospital escola.

Ele simpatizou logo com ela, mostrou-se interessado pelo seu gosto por essas intervenções vindas de longe, portadoras de mensagens estranhas, deslocalizadas e talvez por isso como que refrescantes e suaves que quebravam a monotonia do quotidiano repetido.

No segundo dia, perguntou-se como seria a vida daquelas pessoas presas da insularidade.Fechadas nos seus círculos, microsociedades severas,decerto cruéis e impiedosas face a qualquer desvio ou anomalia.

Mas nenhum deles deixava levantar o véu.Mesmo Isabel parecia esquiva, fria e distante.Por isso, ele resolveu agir com naturalidade, limitando-se a destilar o seu entusiasmo, ligeiramente possuído pela matéria do workshop.

Isabel no entanto deixaria escapar que o filho entrara para a Universidade naquele verão e que o marido era realizador na TV local e que a família era grande e ramificada com muitos irmãos e primos.

Ricardo não tinha tempo para fazer turismo e quando regressava à tarde e fazia os telefonemas familiares da ordem, ressentia-se com a solidão do quarto.

Uma noite, Carmem sua colega e amiga, ligou para o apoiar.

- Ai Ricardo eu tenho que aprender Inglês e depressa…

- Mas então porquê agora?

- Hoje ia sendo um desastre. O Fernando do Voo convidou-me para um Refreshement.Eu julguei que era para um refresco e estava com tanta sede que fui a correr ter com ele ao terceiro andar e qual não é o meu espanto quando abro a porta da sala confiante que ia beber um sumo ou um pirolito, quando vejo um grupo enorme a olhar para mim e o o Fernando a anunciar muito sério que tinha convidado a Drª Maria Carmem para lhes falar durante meia hora sobre segurança Social.

- Meu Deus!Sem qualquer preparação?

- Nenhuma!Eu julgava que ia para um lanche e dei por mim a ter que discursar de improviso.Olhe, nem sei o que disse.

- Oh Carmen, não se zangue mas é de morrer a rir…Ah, ah, ah…

No dia seguinte, Isabel mostrou-se mais expansiva, abriu-se mais e aos poucos foram descobrindo interesses em comum.Ela apreciava a Natureza, gostava de observar os pássaros e delirava tirar fotografias.Libertava-se da sua rotina de médica anestesista longe do bulício da cidade, numa casa junto à praia num lugar quase ermo mas bonito.

Ricardo ficara encantado com a sinceridade dela , o seu desejo de correr atrás de algo que fosse diferente e belo, um perfume ou uma imagem a tornar perene.

Mesmo que a noite fosse mais solitária e ele se sentissse desamparado e sem rumo, o dia seguinte e o encontro com a sua amiga de ocasião dissipavam a aproximação da tempestade depressiva.

Uma noite bebeu demais, despiu-se e masturbou-se durante um duche demorado e lento e acordou de madrugada enregelado e nu.Vergonhas inconfessáveis de homem adulto.

A semana passou e a formação terminou bem com manifestações de apreço e regozijo sobre o curso e o formador.

Com a pressa para chegar ao aeroporto a horas, esqueceu-se do sobretudo e Isabel foi levá-lo ao lounge. Trocaram votos com simpatia, ele agradeceu-lhe a gentileza e generosidade.Prometeram manter contacto.

E, por qualquer estranha razão, cumpriram.

Pasaram-se vinte anos.Com a História geral da humanidade aos saltos e na pessoal, as mortes, os divórcios, as viagens e as doenças…

Ricardo continuou por vezes a sentir-se envolver por um manto de tristeza que o asfixiava até ao insuportável e então estendia a mão às nuvens como que num gesto para tocar em alguém vagamente tangível.

Mensagens iam e mensagens vinham.

Palavras que atravessavam o oceano e que eram acolhidas com um sorriso,por vezes uma surpresa e sempre com uma sensação indescritível.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 01/08/2019
Código do texto: T6709822
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