A INSIGNE PROFESSORA
No fundo mais recôndito da sua memória ela avultava como uma presença luminosa, um rasto de uma estrela brilhante que passara célere mas que deixara uma presença indizível…
Pessoas que conseguem legar uma boa marca, que cumprimentam, cuidam e ensinam.
Ah sim, Maria Helena contrastava com as outras pela incrível beleza que irradiava e com e simultaneamente um halo de simpatia .
Ela passava no pátio com a bata branca , manchada que envergava no Laboratório para as experiências de Física e Química:
- Cuidado.Baixem-se que pode haver uma explosão.
Um dia houve.Quem estava na primeira fila ficou com as pestanas meio queimadas mas todos adoraram o stress e riram-se depois do susto.Ninguém reclamou nem pediu nada.
Ah sim, Maria Helena.Não era nada como as outras.Diferente da Marina de negro vestida, óculos escuros, elegante e magra com “Os Lusíadas” debaixo do braço nem Tarracha baixa e anafada com o seu buço farto e amarelo muito “Parlez-vous français?” nem como a Ondina dos números deslavada e tábua de engomar, ela destacava-se.
Primeiro eram os olhos de um azul desconcertante, o sorriso caloroso, a naturalidade, o comentário livre e à solta, a elegância, a pose, algo que não se conseguia mesmo descrever.
Era mulher de um homem alto e sobranceiro, provavelmente um juiz ou oficial de carreira, tinha três ou quatro filhos, ia levar sempre uma delas ao ballet no atelier da ex bailarina Isabel Affonseca, conversava com toda a gente e interessava-se genuinamente por todos com quem se cruzava.
Ele já nem era seu aluno e quando a encontrava, ela conseguia arranjar sempre uns minutos para se inteirar das novidades e dialogar – sem dúvida alguém muito especial e ele aprendera a confiar nela.
- Estão aos gritos no ginásio! Ai,meu Deus o que terá acontecido?
E Maria Helena sorria e tranquilizava os colegas:
-Não é nada.Estão a ensaiar uma peça de teatro.
Os alunos confidenciavam-lhe todos os seus projectos.
Mais velho, ele via-a por vezes passar ao longe na galeria e costumava acenar-lhe, sentindo uma amarga nostalgia :
- Descobri que são poucas as pessoas boas e ela é uma delas, uma das raras. Uma espécie de tesouro.Sinto muitas saudades das suas aulas.
Ah sim Maria Helena era uma diplomata, conseguiu atravessar a revolução sem ser saneada do liceu, ser aceite por gregos e troianos talvez porque sempre soube ver o lado prático das coisas,deter-se no que era verdadeiramente importante, elevar-se a um nível consensual e intocável.Tratava quase todos por “Filho” e por “Tu”.
A vida traga as pessoas simplesmente, as figuras marcantes desaparecem no horizonte, são transportadas para longe e esquecem-se.
- Estará morta ou viva?Tenho uma grande curiosidade – lembrava-se ele.E a nossa mente é tão estranha, tão psicopata.
E depois fatalmente a imagem dissipava-se e só voltava a assombrá-lo, passados anos.
Mas num dos jantares de domingo com o seu amigo Alberto ele ouviu distintamente aquela voz na mesa do restaurante.Uma senhora idosa atravessava o corredor, amparada por uma mulher mais nova. Uma filha ou neta, alguma familiar.
- Ai espera.Um momento.Eu conheço esta pessoa.
Levantou-se num impulso, aproximou-se dela e dirigiu-lhe a palavra
- SrªDrª Maria Helena.Fui seu aluno no século passado.Que prazer enorme poder revê-la!
Nem meio minuto levou a reagir:
- Como estás? Que bom ver-te! O que foi feito de ti?- respondeu ela.
A outra senhora sorriu, já não era certamente a primeira vez que assistia a uma cena daquelas.
De pé, num segundo que pareceu todo o mundo ou uma hora encantada e única, trocou informações, pegou nas mãos da sua antiga professora e beijou-as com os olhos limpídos e com lágrimas.
-Continuam a convidar-me para os jantares.E eu aceito, vou.Parece que já não conheço ninguém mas todos me tratam como se eu fosse …uma instituição.Não sei se hei-de rir , se hei-de chorar.
- Mas é claro, sois uma referência, um ídolo.Eu já tenho o cabelo branco e nunca me esqueci.
Despediu-se feliz por a saber viva, linda e ancestral.Voltou para junto do amigo atordoado e exultante:
-Foi minha professora de Físico Química no Liceu.Há quantos anos!
-Já percebi.Acalma-te.Assisti a tudo.Ela deve sentir-se rainha com velhos admiradores fieis e rojados aos pés como tu e uma legião de fans.
Ele assentiu ainda emocionado.Voltou-se e ela já tinha saído.
- Por favor, serve-me.Preciso de beber. Mais um copo.