UMA NOITE EM LISBOA

Os brasileiros tinham prometido vir.A ele competia travar o conhecimento com os ilustres visitantes , dar uma volta com eles pela cidade ao fim da tarde e jantarem num local típico ao ar livre com o Tejo ao fundo e depois… logo se veria.

Abriu a janela e respirou o ar da tarde.Uma tarde amena, soalheira em que corria uma brisa fresca e agradável.Mas mesmo assim ele sentia-se expectante, inseguro e tímido.Como seriam eles ao vivo, esses simpáticos amigos virtuais que com ele partilhavam uma paixão comum?

Resolveu ligar ao Jaime e pedir-lhe que o acompanhasse naquela espécie de aventura.

- Mas eu vivo no Porto.A trezentos kilómetros.

- Compreendo.Mas não pude deixar de tentar.Espero que não me leve a mal.

Fez-se um silêncio.

- Eu vou no próprio dia e regresso no dia seguinte.Também gostava muito de conhecê-los e de conhecê-lo a si.

- A sério?Bem.Isso é óptimo!

Foi buscá-lo ao comboio à estação de Santa Apolónia.Apreensivo com aquele primeiro teste – em que era comum e certeiro afirmar-se que a realidade poucas vezes correspondia à imaginação e que o mais certo era confundirem-se e experimentarem uma decepção ao conhecerem-se pessoalmente.Mas agora já era tarde para recuar e ele achou que também aquilo não seria o fim do mundo e optou por se armar de coragem e seguir.

O comboio do Porto chegou, centenas de passageiros desembarcaram na gare mas ele de Jaime nem sombra.De súbito, o telemóvel tocou e ele atendeu.

- João?Jaime.Acho que estou mesmo atrás de si.Olhe.

Ele virou-se e lá estava Jaime, esse desconhecido com que ele travara imensas conversas nos chats do Messenger.Os dois desligaram e fitaram-se com atenção.

- Olá.Então o Jaime existe mesmo e é de carne e osso.

- Pelos vistos.E o João também.

Deram um aperto de mão vigoroso.

- É tão estranho!

- Sim.Quase como um encontro às cegas.

- Temos que vencer a sensação.Vamos ter com eles daqui a três horas.Eu já pensei numa estratégia.

O outro olhou-o curioso.

- Faz de conta que andámos na Tropa e fizemos a guerra juntos…Uma suposição.

- Ok.Porque não?Talvez ajude…Pensei em passar por casa dos meus primos para tomar um duche e mudar de roupa e depois voltarmos a encontrar-nos para irmos ter com eles.Os brasileiros.

- Proponho que faça isso mas em minha casa.Somos companheiros.Afinal desde a guerra onde?

- Em Angola.

- Concorda então?

- Por mim, sem problema.E que tal para dar mais verosimilhança ao quadro se nos tratássemos por tu?

- Claro.Vens?

E pôs-lhe o braço no ombro, observando.

- És mesmo real.

- Existo mesmo.

E ambos riram-se à saída da estação.

Por mero acaso talvez, conseguiram estabelecer um primeiro clima de simpatia que evoluiu para empatia e ao fim de hora e meia os fez sentir como amigo reais de longa data embora, de facto, apenas se conhecessem virtualmente há pouco mais de um ano.

E a hora do encontro chegou.Tinham combinado à porta de um pequeno hotel que dava para o Parque Eduardo VII um espaço inclinado e mais ou menos extenso que começava ao cimo de uma das colinas da cidade e terminava na rotunda conhecida como Praça do Marquês.

Bartolomeu, o mentor do grupo e Suzy a professora aposentada já se encontravam no local à espera deles quando estacionaram pontualmente em frente do edifício.

Mas correu tudo bem.Bartolomeu era um líder natural, afável, perspicaz e atraente.Olhou os dois portugueses, olhos nos olhos, a perscrutá-los, comparando o juízo feito às suas intervenções on line com a realidade que se deparava à frente.João aproximou-se com delicadeza de Suzy, uma senhora encantadora, com um toque de fragilidade nos gestos e no olhar mas que guardava uma fortaleza interior,pegou-lhe nas mãos, levou-as aos lábios e disse-lhe:

- Finalmente, conheço a minha fada.

Ela sorriu contrafeita e os outros entreolharam-se intrigados.

- Bem , vamos dar uma volta.Não tarda o pôr do sol.

Ele conduziu-os um pouco á toa e à aventura pela cidade branca.Percorreram ruas e avenidas e contornaram o Castelo, a Basílica,o Rossio, a baixa pombalina, o Panteão, o Mosteiro e seguiram pela Marginal. A conversa fluíu, com o português de Portugal e o Português do Brasil e piadas inócuas,algumas gargalhadas gerais e a comovente vontade e propósito de estabelecer laços entre perfeitos desconhecidos.

- Muito diferente de lá?

- Sim.E a luz…Como você disse, uma vez num dos seus posts afinal há um mar que nos separa.

- Mas você respondeu que não há longe nem distância e citou a Ursula.

- É verdade.

Entardeceu e a noite lentamente caiu enquanto se dirigiram a uma esplanada com vista sobre as luzes da cidade e o rio em terceiro plano.

A ementa foi simples mas saborosa e tipicamente portuguesa.Gerou-se uma conversa animada e divertida.E vieram á baila os poetas Camões, Pessoa e Florbela:

- Mas há outros muito bons mas menos conhecidos – apressou-se Jaime a informar.

E como não podia deixar de ser falou-se nos ausentes:

- Então porque é que o Reinaldo não veio?

Bartlomeu explicou que o seu grande amigo não pôde deixar o Salão nem as clientes.

- O nosso amigo açoriano deve estar a esta hora a gozar o ar da tarde numa esplanada tal como nós.

- Mas lá é uma hora mais cedo, não te esqueças.

Suzy observava tudo atentamente e por vezes fazia uma observação que demonstrava uma sensibilidade e generosidade imensas.

- E o que acham do vinho português?

E questionaram sobre o grupo de poetas talentosos que postavam regularmente no grupo versos geniais para além de Bartolomeu,o incontestável grão-mestre e capitão. E tantos outros gentis e maravilhosos que nem sempre se manifestavam mas que estavam sempre presentes e atentos.O agricultor, o actor,a dama frenética e a dama dinâmica, a professora Olga, e mais de uma dezena, centena de personagens intrigantes e reveladoras.

- A tua voz Bartolomeu é a mesma que nós ouvimos nas gravações.Igualzinha.

Foi mágico e circunstancial.Dissipou-se o mito.O impossível concretizou-se. E ele pensou que a humanidade, um testemunho com que ele se estreara no grupo poderia ser afinal numa ínfima parte calorosa, solidária e afectuosa.

Ergueram os copos, fizeram saúdes, abraçaram-se os quatro e no final da refeição era como se já se conhecessem há uma eternidade.

- Vamos curtir, surpreender a noite.Venham.

Subiram o Chiado, passaram pela Brasileira onde havia uma estátua sentada de Pessoa,

- Façamos uma vénia! – e todos alinharam na loucura inofensiva.

internaram-se no Bairro Alto.Numa antiga casa de fados, sentaram-se os quatro á volta de uma mesa junto aos guitarristas e experimentaram cálices de porto antes de se fazer silêncio para se cantar o fado.E depois enlevados pela voz rouca, bem timbrada da fadista deram espontaneamente as mãos com que para firmar que há noites em que de uma forma singela e convicta as barreiras intransponíveis do mundo e da vida se ultrapassam num voo raso, momentos belos que se partilham num encontro inexplicável de almas tão diferentes e tão distantes ,na senda dos mistérios e da súbita aproximação entre desconhecidos.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 28/07/2019
Código do texto: T6706490
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