JOÃO & JOÃO

O Mosteiro albergava a igreja mais ancestral da cidade com os vitrais, as colunas em estilo gótico manuelino,ogivas rasgadas a uma altura descomunal e à entrada os túmulos de Camões e Vasco da Gama, símbolos da Identidade da Nação.

Eram dezanove horas em ponto quando João Serra entrou apressado e encolhido no sobretudo azul escuro, escolheu um lugar escondido na nave lateral e deitou um olhar rápido à Eminência que entrava dos bastidores, da porta que dava para a sacristia, seguido por três acólitos prestimosos, disponíveis a ajudá-lo na celebração da missa e num breve e possível relance de reconhecimento, fixou por instantes a atenção no homem sofisticado e maduro e com ar distante que se tinha sentado,numa fila vazia e de lado, ao abrigo dos olhares estranhos.

Há muitos anos atrás, os dois, tinham sido colegas de turma durante todo o Curso dos Liceus do primeiro ao sétimo ano, um número a seguir ao outro, por ordem alfabética,João Manuel Santos e João Manuel Serra.

Eram os últimos anos da ditadura e o Liceu, um baluarte da Moral e dos Bons Costumes dirigido pelo braço de ferro de um reitor que pactuava com a União Nacional e que tinha escalado a punho as hierarquias no Ministério da Educação.

Há uma semana que o Dr Simão Veríssimo se detinha com afinco e pormenor numa referência insignificante do programa de História do Curso Complementar, o alegado período da “pornocracia papal”.

Partilhando a carteira os jovens Joões, vestidos a preceito como era obrigatório, de gravata cinzenta e blazer azul tomavam notas à medida que a exposição tomava corpo.

O professor era um homem enorme, de um metro e noventa, direito como se tivesse engolido um garfo e possuía uma voz tornitruante,grave e áspera, capaz de arrepiar um quartel.

- Depois de Teodora e Marásia, os papas seguintes vão ser seus filhos ou seus amantes!

Fez uma pausa para analisar a reacção dos alunos que mediram o alcance daquele escândalo com cara de parvos.

João Santos pousou a caneta na carteira, riscando o silêncio da classe e soprou para o colega:

- Eu não escrevo isto!

- Fazes greve?

- Senhor Santos, Senhor Serra, alguma dúvida?- perguntou o gigantesco mestre, em tom de provocação.

Serra olhou para Santos, prestes a explodir de revolta em relação ao que considerava um desrespeito, uma chacina preparada contra os cristãos, os católicos e a Religião e tentou salvar a situação.

- Nenhuma Sr Doutor.Deixei cair o lápis.Peço desculpa.

A aula continuou sem incidentes.

No intervalo, no grupo de amigos, Santos vociferou:

- Começo a estar farto que ele perca tempo a falar de coisas inúteis.

- Tais como?

- Os belos seios desnudos de Potnia Theron, os bacanais ardentes de Messalina, a sodomia quente a que se entregavam os cidadãos gregos nos banhos públicos e um monte de taras sem qualquer interesse que ele tem o prazer de descrever com detalhe para ver simplesmente se nos consegue escandalizar.

- Como se fossemos donzelas .Eu acho o homem muito engraçado.Parece uma actriz porno que consegue surpreender em cada cena com uma nova acrobacia.

Mas quando terminaram o último ano, Serra seguiu contrariado e desiludido para a Faculdade de Direito enquanto Santos, corajoso e iluminado confrontou o Pai com o seu propósito e vocação:

- Eu quero ser Padre.Só escolhi a alínea e) para vos fazer a vontade.Mas está decidido.Não vou seguir Direito.

O pai irritou-se, pregou-lhe uma bofetada que o fez esguichar sangue do nariz, a mãe intercedeu aflita, a irmã desatou num pranto e ele acabou por conseguir entrar para a Faculdade de Teologia.

Serra telefonou-lhe um dia já ambos na Universidade para o convidar para irem ao Teatro ver um espectáculo baseado num acontecimento histórico:

- Não naquele com que tanto embirravas dada pelo nosso insigne professor Simão Veríssimo.

- Não posso sair.Estou a preparar-me para ingressar no Seminário. Não levo uma vida cá fora.

João Serra desligou meio atordoado com a resposta.Teve a nítida visão que o seu velho colega subia devagar mas determinadamente a escadaria que um dia o conduziria à beatitude celeste, à santidade absoluta , em suma, talvez ao Céu.

E quanto a ele próprio debater-se-ia com todas as perigosas e vis tentações e todas as decepcionantes promessas quebradas pelo pai de livrá-lo de cumprir o serviço militar e ir morrer na guerra colonial, de lhe arranjar um emprego estável e razoavelmente pago na condição e se - e só se - ele concluisse aquele curso árduo e desinteressante e que viria a comprovar-se uma fraude para se alcançarem os objectivos que lhe haviam sido falsamente prometidos.

Ele e João Santos, o verdadeiro Santo nunca mais se falaram, entretanto.

João Serra ia sabendo esparsamente notícias da ascensão do colega.Brlhantes notas no Curso, conclusão com a maior média,estágio na cidade do Vaticano em Roma na Itália, a consideração da hierarquia eclesiástica por um percurso tão fulgurante e diga-se genuinamente exemplar.E alguns anos depois a sua nomeação como Pároco na Igreja mais prestigiada da capital.

João Santos nunca soube mais nada do colega que lhe tinha salvo a face numa longinqua aula de História no Liceu.Esse tinha concluído Direito, feito o estágio de advocacia, aberto escritório e desistido, quase indo à falência com falta de clientes, ingressado numa empresa , trabalhado em Recursos Humanos,se submetido a uma chusma de chefias desonestas e incompetentes e deixado-se ir, uma carreira profissional em que as promoções eram raras e muitas vezes injustas.

E nessa corrida, tinha tido crises, recuperado, experimentado drogas, casado, divorciado, voltado a casar-se e chegado à conclusão que deveria ter tido coragem e rido na cara do pai quando ele lhe proibira contrariar a sua vontade.

- Há três profissões que são uma vergonha: padre, professor e actor.Não se ganha dinheiro nenhum.

Talvez fosse mesmo verdade e ele não quisesse que o pai lhe desse uma bofetada.O Pai sempre o aterrorizava desde a infância e não havia nada a fazer.Ambos sabiam que eram uma cruel e triste decepção um para o outro.Tinha conseguido escapar à guerra por um triz apenas porque, por acaso, tinha havido uma espécie de Revolução que acabara em golpe de Estado.

Um dia Serra viu Santos participar num debate na televisão sobre a legalização da interrupção voluntária da gravidez e sorriu ao aperceber-se que o então já conceituado Padre tomava posições radicais e extremas:

“Assim nunca mais chegas a Papa”.- pensou preocupado.

E divertiu-se quando as câmaras de televisão captaram a visita que o Princípe e a Princesa de um reino vizinho fizeram a Portugal e a sua passagem obrigatória pela igreja histórica com Sua Eminência,o Senhor Padre com ar seráfico sem um sorriso esboçar , limitando-se a abrir caminho no passeio guiado, numa crítica velada ao passado pouco recomendado da Princesa, divorciada e aparecera toda de branco e véu no casamento real com o antes apagado num passe de magia.

“Ah sim,ele não verga”,pensava, João Serra sobre o seu antigo condiscípulo,admirando-lhe a coerência, a coragem inflexível e a sua indiscutível verticalidade sobretudo nalguns pontos controversos.

Influenciou a irmã a casar a sobrinha no mesmo cenário onde o outro se transformara numa espécie de vingador dos pecados e hipocrisias e quase tinha tido um troço,mais um sobressalto quando após o sim, as alianças e o casto beijo consentido após o “Pode beijar a noiva” a sobrinha se virou para sair, ostentando nas costas um decote cavado até ao rabo esculturalmente torneado e sensual e Sua Eminência bradou sem qualquer pudor que toda a congregação ouvisse:

- Venha cá, venha cá!Se eu tivesse visto que vinha casar-se com esse vestido tão pouco decente pode ter a certeza que a mandava ir a casa buscar alguma coisa para se tapar.

João Serra no papel de tio apressou-se a dissipar a nuvem negra, a acorrer para desanuviar o ambiente que entretanto se fizera tão tenso como o prenúncio de uma tempestade..

- Bem, desta vez escapam.Vão, vão.E muito Obrigado Eminência pela sua generosidade.

A Eminência distraiu-se dos noivos que aproveitaram a ocasião para se afastarem e fitou-o com curiosidade:

- Já nos conhecemos?

- Não creio! Mil perdões pelo desaforo da jovem noiva. Para nos ressarcirmos do incidente e em nome da família, gostaria muito de lhe formular um Convite de última hora mesmo sabendo que deve recusar.Vossa Excelência aceitaria honrar-nos com a sua presença no copo de água?Irá ser servido aqui perto numa quinta do Restelo.

- Agradeço mas, como deve calcular, já tenho outros compromissos…O Senhor é o pai?

- Não.Sou apenas o Tio da jovem Lígia.

O Padre olhou-o, como que absorto nas suas mais perdidas memórias.

João Serra fez uma pequena vénia e afastou-se prudentemente pela nave da Igreja, antes que algo ou alguém se interpusesse naquele momento:

- Foi noutra vida.Como se já tivéssemos os dois morrido um para o outro.O melhor é mesmo manter… a distância.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 26/07/2019
Código do texto: T6704948
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