O POETA E O PROFETA II
Numa noite de sexta-feira, perto das 0h30, o Profeta pegou seu celular:
- E aí?
- E aí digo eu. Tá mais sumido que tudo – dizia o Poeta na mensagem.
- Como estamos? Fiquei sabendo que você não tem se sentido muito bem.
- Meu nobre amigo, como sabe ainda busco me livrar de muitas coisas que parecem que mais me prendem do que estão dispostas a sair.
- Você procura livrar-se? – perguntava o Profeta – mas livrar-se do que exatamente?
- Não sei se já te disseram, mas você costuma cavar bastante nos questionários.
- Faço isso pra saber o real motivo do problema. O que é que tens?
- Não tenho dormido bem. E a causa da minha insônia foram dois sonhos que tive. Mas antes, quero que me mostre seu último rascunho.
- Do que está falando? – o Profeta manifestava seu desassossego com a afirmação do Poeta.
- Calma. Você tinha me mostrado um rabisco de versos, porém sua letra estava tão boa que imaginei que teria que interpretar os hieróglifos.
- Seu humor ainda é nocivo a essas horas da noite. Não quero acordar minha deusa negra.
- Ela não será acordada. Quem está com insônia sou eu. Vamos, mostre-me os versos.
- Mas de que versos? Tudo o que escrevi eu já lhe antecipei.
- Não estou dizendo dos versos que permites que o público veja. E sim os que escreves...
- Ah. Aqueles textos me são apenas devaneios literários – interrompeu o Profeta – mais nada.
- O verso que escreves com sua alma após ver aonde você chegou.
- Olha, ou hoje você está enigmático, ou simplesmente sua insônia está prejudicando seu raciocínio.
- Deixe-me te lembrar de uma coisa: se tenho capacidade para ler seus amigos e a você, posso ler o que está nas entrelinhas. Isso tem a ver com o primeiro sonho que tive.
- Conte-me o sonho. Após me contar o sonho lhe direi o verso. Se é que existe um.
- Estava eu indo até sua casa, num carro, quando de repente o céu foi se tornando escuro. E não era nem tardezinha. Ao chegar à sua porta fui atendido por sua esposa e te vi numa janela com uma xícara de café. Sem a asa, de preferência.
- Até aí só estranho o céu ficando escuro. É mais um conto? – debochou com amor o Profeta.
- Vai vendo. Nesse ínterim vi que suas lágrimas rolaram do seu rosto. Você começou a falar sobre uma tristeza e conversava com alguém que não te respondia com um sorriso. Então mostrou um papel para esta pessoa; ela lhe deu uma caneta e você escreveu um poema sem métrica, dizendo que sua alma estava da mesma forma, sem alinhamento com aquilo que tanto queria ou poderia satisfazer.
- Ora ora... eu chorando... só sonho mesmo.
- Escute – dizia o Poeta pelo aplicativo – então a outra pessoa escreveu outra parte dos versos. Também sem métrica; você leu e abaixou a cabeça. A outra pessoa sorriu e você ficou calado.
- Era uma disputa de quem escrevia melhor?
- Não. Quando me aproximei de você, que estava triste me entregou os versos. Não sei como, mas a métrica estava perfeita. A cadência, a escolha das palavras. Tinha tristeza e alegria, fúria e humor, senso crítico ácido e devaneios. Era o poema perfeito. Fiquei deveras intrigado porque você escreveu uma parte e seu interlocutor outra. Curioso, quis saber quem era a pessoa com quem você conversava.
- E quem era?
- O vidro da janela. Seu próprio reflexo.
O Profeta não respondeu de imediato:
- Ou? Ou? Tá vivo ainda? - perguntou o Poeta.
- Na verdade sim. Só achei estranho.
- Por que deveria ser estranho pra você? É um sonho. você escrevia os primeiros versos e olhando para o seu reflexo escrevia a outra metade.
- Está dizendo que converso sozinho?
- Ainda vê problemas nisso? – perguntava com rispidez o Poeta.
- Um momento; algo não bate. Que poema foi esse que eu escrevi?
- Nisso está o mistério do primeiro sonho: não me lembro.
- Mas você disse que era o poema perfeito.
- E era. O mais lindo que já li.
- Soneto? Prosa? Versos livres?
- Visual. Concreto.
- Só pode ser piada.
- Ou sonho – riu-se do outro lado o Poeta.
- Quantas linhas?
- Duas. Uma horizontal e outra vertical.
- O que estava escrito? Preciso saber.
- Vamos ao segundo sonho? Ou vai me deixar na insônia mesmo?
- Está bem. Conte-me tua história.
- Já ouvi essa frase em algum lugar.
- Alumia pudera da soturnidade dessa insônia. Diga-me logo. As horas voam.
- O segundo sonho foi o que me perturbou. Vi uma montanha alta, muito alta e eu estava nela. Não sei como consegui subir até lá, pois era muito íngreme. O ar era rarefeito. Névoas claras e brancas sobrevoavam o local. Lá embaixo...
Naquela hora o Poeta fez silêncio. O Profeta inquiriu:
- Vamos! Prossiga! O que tinha lá embaixo?
- Um caixão.
- Ok. Já está estranho o suficiente isso. – reclamou o Profeta.
- Não entendo como eu pude ver. Mas vi claramente um caixão. E eu vi que de repente eu caía. E não conseguia me apoiar em nada. A queda era violenta, fatal, porém no sonho, a velocidade estava alterada. Eu caía, sim. Mas devagar.
- Estás escrevendo terror em excesso. Deves parar um pouco.
- Ouça-me. O sonho não acabou. Da tragédia lúgubre, de repente tornou-se algo tão pilherio que nem pude acreditar. Sério. Espero que não ria do que te direi agora.
- E poderei rir após ouvir tais coisas?
- Poderá. Porque enquanto caía, você surgiu, do nada, não sei como, e quando eu vi você, te segurei pra não cair.
- Minhas mãos tiveram força pra te segurar, então?
- Suas mãos não. Suas orelhas.
- O QUE? – do outro lado o Profeta gargalhava.
- Não falei. Mas é verdade. No sonho eu segurei em suas orelhas, porque suas mãos seguravam um espelho oval quebrado e não largava ele de jeito nenhum.
- WHAT?
- Escute. Não é fácil dizer o que digo. Sinto-me idiota. Enquanto você sustentava com as mãos o espelho quebrado pela moldura, eu me segurava em suas orelhas. Agora aqui está o mais impressionante: quando você levantou a cabeça, eu pude sair daquela queda livre e me firmei na parte da montanha em que você estava.
- Menos mal. Você foi salvo. E o que fiz?
- Você deixou o espelho cair. Então se jogou pra buscá-lo. E você caiu dentro do caixão, ele se fechou. Na tampa do caixão estava escrito: ÚLTIMO.
- Que horror. E o espelho? O que sucedeu?
- Ele estatelou-se no chão. Minha visão se aguçou e pude ver o que estava escrito nos cacos que ficaram pelo chão.
- E o que estava escrito?
- Eram letras embaralhadas. Mas pude compreender. Estava escrito: PRIMEIRO.
- Não entendi. Confesso que não entendi.
- Eu também não. A última coisa que vi do sonho foi quando li novamente as palavras de acordo com a ordem em que ficaram no chão: PRIMEIRO e ÚLTIMO. Então uma torre em formato de lápis surgiu da terra e tornou-se maior que a própria montanha. Você estava no topo dela com uma veste talar e branca. Você olhou para mim, sorriu, e aí acordei.
O Profeta ficou um pouco incomodado com esse tipo de sonho, pois ele tinha por costume ser chamado para interpretar os sonhos e pesadelos de outros, mas ninguém nunca sonhou com ele. E nunca daquela forma.
- Está tarde. Preciso descansar. – disse o Profeta.
- Espere! – inquiriu o Poeta – não vai interpretar meu sonho? Vai me deixar na companhia da insônia por mais uma noite?
- Só vai durar mais uma noite. Pela manhã virá sua alegria.
Quando o Profeta disse aquilo, o Poeta enviou um emoji com um sorriso, um pombo e um coração:
- Obrigado amigo Profeta. Até quando não interpretas, ainda consegue me dar descanso.
- Tem certeza que esse sonho tem interpretação? – questionou mais uma vez o Profeta.
- Se tem eu não sei. Mas um dia, como foi com José do Egito, você poderá interpretar, ou apenas se lembrar dele. Boa noite.
- Boa noite. – e o Profeta colocou o celular na cama.
Na manhã seguinte, a esposa do Profeta percebeu que seus olhos estavam cansados. Ela foi até ele e o abraçou:
- Outra vez lendo a noite no celular, não é meu amor?
- Outra vez, meu bem. Outra vez.
- Quanto tempo faz que essas conversas estão aí?
- Trinta anos, amor. Ler essas coisas tão antigas me cortam o coração.
- Querido, e por que você não as exclui?
- Elas são como aquele sonho, amor. Eu posso não entender o porquê não excluo... mas eu me lembro. Ah se me lembro. Agora vamos que eu quero ver minha netinha. O Asaph não para de me mandar mensagem.
25 de julho de 2049
FIM.
Uma homenagem ao poeta, profeta e grande amigo que Deus me deu WALLACE AMORIM.
Leiam suas obras e entenderão.
Conto baseado no conto O POETA E O PROFETA do autor homenageado.