CORAÇÃO LOBO SOLITÁRIO

Arrefecera lá fora.Teve que vestir um casaco de malha grosso.Abrir as portas do terraço de par em par.Trouxe o cálice de cognac para fora e sentou-se na cadeira de ferro branco a admirar o céu estrelado.

Lembrou-se da Mãe desaparecida há anos que o olhava com atenção,o estudava e procurava advinhar o que ele estaria a pensar ou que haveria de decidir sobre isto ou aquilo.Nunca tinham conseguido ser completamente sinceros um com o outro.

Olhá-lo-ia naquele momento difícil,talvez de pé,muito direita , numa varanda celeste, algures num canto recôndito do universo imenso.

Deu lugar à sua jovem Colega de outrora uma rapariga frágil e insegura e decerto sempre muito triste.E o percurso longo e acidentado do seu casamento com alguns desvios e algumas mágoas infligidas de parte a parte.Um grande amor que ultrapassava o doméstico, as regras, o sexo e até a morte.

Naquele momento ela estaria a dormir, a sonhar, com o gato a seus pés.

Relembrou uma manhã com Sol na praia, uma caminhada cúmplice e calorosa através de um areal longo que se estendia desde a foz até ao mar,oceano e o conforto em saber que se tinham, um ao outro, por longo tempo.

Sorriu, desabrido.Tinham conseguido envelhecer juntos.Para o bem e para o mal.E ele não a deixaria desamparada.

Mário lembrou-se de colegas e amigas, pessoas com quem partilhara momentos especiais ainda que vividos com a máxima simplicidade sem segundos sentidos nem paixões avassaladoras.

Engoliu mais um gole e esperou que o calor subisse e o confortasse talvez.Precisava de coragem.

Ah sim a Carmo era loura, sua colega de formação e de ofício e tinham construído um humor e uma visão analítica sobre o mundo empresarial e os outros,os bobos da festa …havia a Irene, a médica que vivia nas ilhas e que continuava regularmente a enviar-lhe as mensagens de apreço e incentivo e quando um deles se sentia mais em baixo pedia ao outro o nome de uma canção bonita, uma frase ou uma citação adequada, um simples sinal, um gesto que ajudasse a recuperar e a seguir, seguir em frente.

O campo é um estranho cenário na noite que habita os espíritos.

E havia o Nuno, quinze anos mais novo com quem ele tinha vivido uma Amizade e uma Paixão e com quem se habituara a uma certa e luxuriante intimidade.

E outras personagens, melhores actrizes in a supporting role como a Dona Agar que lhe descobrira muito cedo uma certa propensão para as artes e a Maria Cristina que o destacava desde que ele era um jovem adolescente e uma fila de mulheres adoráveis, simpáticas e muito queridas com ou sem baton, com grandes seios ou desoladas tábuas de engomar que tinham entrado e saído da sua vida com a mesma ligeireza.

Estrelas na luta insana na escola, no liceu, na Universidade, na Empresa e na vida.

O pai moribundo quisera mostrar-lhe que era mais esperto do que se supunha, mais perspicaz, mais atento e dissera-lhe às portas da morte:

- Escusas de negar.Eu sei que dás para os dois lados.

- Desculpe?

- Papas tudo.Talvez faças bem.Quem sabe?Não estou a criticar.

Ele não soube naquela hora o que dizer e como reagir.Mudou de assunto.Qualquer coisa que fizesse mudar aquela cena mórbida.

E passou a vida em revista, por alto e reviu as marés de humilhações e o sofrimento tornados num segundo e de súbito tão despidos e irrelevantes.

Já não lhe interessava a vida.Ponto.

Levantou-se e foi buscar a corda com que pensava enforcar-se, trouxe o banco, deu a volta ao jardim deserto até ao anexo em ruínas que tinha escolhido como o local do crime de que seria simultaneamente o autor e a vítima.

Com precisão e frieza executou os preparativos.

- Que venha ela,a Morte, grande puta!

O telemóvel tocou e ele ainda ponderou não atendê-lo.Mas quem poderia ser aquela hora escusa.

- Mário?

- Marília?

- De repente, estava a dormir e acordei angustiada a pensar em ti e resolvi ligar-te.Onde estás?

- São três horas da manhã.Estou na Quinta. A trezentos kilometros de Lisboa.

- Meu Deus.Vou vestir-me e vou aí já ter contigo.

- Enlouqueceste?Meter-te à estrada agora, a meio da noite.Porquê?Para quê?

- Então mete-te tu no carro e vem ter comigo.Suplico-te.

- Eu? Mas…

- Decide-te.Ou vou eu ter aí ou vens tu ter comigo.

Marília era melhor amiga, antiga breve namorada, amavam-se para sempre e ele receava que ela fosse meia bruxa. pressentisse e advinhasse.

- Estavas a pensar fazer um disparate, não estavas?

- Eu…

- Eu senti.Nem penses!

- Já sei o que vamos fazer – disse ela – vamos passar a noite ao telefone até amanhecer. E depois fazes o saco e vens.Vamos almoçar os dois.

Ele acalmou, rendeu-se e aquiesceu. Marília quem diria sua salvadora que o viera resgatar de um suicídio indigno quiçá injustificado.Ele debatia-se há anos com uma depressão e nada mais.

O coração um lobo a precisar de companhia.Ela viera na hora h, no momento certo.Como que por magia dissipara os medos, afastara o terror.Marília, a fada.

O perigo tinha passado.A sua vida não se encontrava mais em risco.

Os amigos sem dúvidas eram um cordão, por vezes um porto de abrigo.

A manhã chegou.

- Salvaste-me.

- Eu sei.Vai arranjar as coisas.E vem depressa.Liga-me no caminho.

Ele chorou em silêncio, grato por ela o ter segurado e agradecido pela sua sorte incrível.Arranjou tudo.E partiu ao encontro da sua velha amiga.

Quando três horas depois, tocou à porta e ela veio abrir olharam longamente um para o outro, antes de ela o puxar para dentro e ficarem abraçados , nos braços um do outro, por longo tempo.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 25/07/2019
Código do texto: T6704525
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