AS IRMÃS BARBA

No Portugal dos anos cinquenta,a residência Taborda era uma vivenda imponente com cave e dois andares, cinzenta e sobranceira, virada de lado para uma paralela a uma das artérias famosas do centro da cidade.As janelas eram altas e amplas e a entrada fazia-se por um portão de ferro maciço que dava acesso a uma mini alameda que desembocava no pátio e num jardim luxuriante com cancelas e terraços e dava acesso à garagem e a um anexo que servia de grande arrecadação.

Fraulein acordava entediada todas as manhãs e descia as escadas impecavelmente envernizadas para fazer a sua ronda matinal.

Começava pela cozinha onde tomava o pequeno almoço que as criadas Miraldina, Vitalina e Joaquina já lhe tinham preparado e sujeitava-se muitas vezes à ignomínia das classes inferiores:

- Não te alambuzes! – atirava uma das serviçais de mau humor.

A visada nem lhes respondia e passava adiante, com a cauda a dar a dar , à sala de jantar enorme com uma mesa rectangular de embutidos,aparadores com salvas de prata reluzentes e um relógio gigante num dos cantos que de hora a hora tocava as badaladas num som metálico, que fazia eco e soava estranhamente como um aviso grave.A sala de jantar dava para uma marquise a todo o comprimento revestida com vidro fosco martelado que banhava as plantas interiores num halo suave.

Fraulein soltava um latido e dava a volta à mesa como que a inspeccionar, saindo altiva para o corredor.À direita havia a sala de costura com uma pequena casa de banho e à esquerda uma porta com acesso à cave que continha um bar e uma dispensa com várias divisões.

- Olha a cadela, talvez ela queira ir à rua - adiantava atarefada Vitalina.

-Que espere que agora não tenho vagar.

Fraulein passava ao largo para verificar a grande sala azul com um pequeno escritório incorporado,uma secretária de mogno negra com tampo de vidro esverdeado e uma estante e os sofás corridos, a televisão familiar e um posto de vigia armado junto à janela que se debruçava para a rua e onde a dona da casa se entretinha a bisbilhotar a vizinhança enquanto fingia fazer um puzzle, sentada a uma mesa alta e quadrada com duas cadeiras onde assentava o seu enorme traseiro.

A porta da sala côr de rosa excepcionalmente encontrava-se aberta porque naquele dia os donos da casa, o abastado casal Taborda dava uma pequena festa para cerca de trinta e cinco convidados seleccionados.Fraulein empurrou as duas portas com o focinho e exprimiu estranheza com o cheiro um misto de alfazema e naftalina que a divisão quase sempre encerrada exalava.Mas lá, sim os maples eram vagamente rococós e ao centro em talha dourada com grandes taças de vidro trabalhado e coberto de cetim azul com pequenas esculturas de anjos a decorar, avultava o pequeno monumento valioso,o tesouro da casa, um centro de mesa que pertencera em tempos aos condes de Paris.

Augusto Taborda era joalheiro numa das ruas principais da Baixa Lisboeta e diziam as más linguas teria começado a sua fortuna acompanhando os coveiros junto às campas dos soldados tombados na primeira grande guerra para pela calada da noite lhes extrair o ouro dos dentes restaurados.Montara uma ourivesaria de prestígio que mantinha com a prestação de três empregados.

Frankelina sua esposa era uma senhora avantajada pelos hábitos sedentários a dar ordens, rodeada da irmã e da sobrinha menos afortunadas e de uma pequena côrte de amigos e conhecidos que de bom grado se prestavam solícitos e regularmente a uma espécie de beija mão real:

- Ó Miraldina, ó Vitalina – não acertava com o nome da terceira e gaguejava furiosa – ó cavalheira, ó tu,vem aqui e serve o chá!

Frankelina era ostensivamente monárquica, lia em voz alta as”Memórias da Marquesa de Rio Maior”de Branca de Gonta Colaço ou “A Repudiada” de Campos Monteiro ou interpretava com diferentes modulações cenas do drama histórico em cinco actos “Leonor Teles” de Marcelino Mesquita para qualquer vítima que se encontrasse à mão. Tirando o ritual anual da cozedura do doce de abóboras provenientes da Quinta que possuíam junto ao litoral e à ajuda prestada em Janeiro para o inventário da loja praticamente não se ausentava, engordando à razão de meio kilo por mês.

Mas quando descia as escadas de bengala com bastão de prata e aterrava ofegante no patamar de baixo, com o seu peitilho branco rendilhado pontuado com um broche de brilhantes a rematar, quem a visse naquele momento ficaria expectante e à espera que ela recitasse, para bater palmas:

“Morta por dentro mas de pé…de pé… como as árvores!” – como a actriz portuguesa Palmira Bastos fazia no final da peça “As árvores morrem de pé”.

O casal tinha um filho único, Eduardinho, um homem muito espigado e escanzelado que não estudara nem fazia nada na vida a não ser estoirar metodicamente a fortuna herdada da madrinha Dagoberta de Guimarães e procriar com a jovem esposa, filha de um bancário ranhoso e engravatado e de uma doméstica careca e boa pessoa.Tinham já produzido dois rapazinhos selvagens e mal educados, de sete e cinco anos, um histérico e o outro muito invejoso e velhaco que torturavam uma pobre velhota, ainda aparentada com a avó, que a deixava viver na cave húmida, a troco de uns arranjos de costura.Nelinha,a nora encontrava-se de novo prenha e enjoada aos vómitos pelos cantos.

Mas representavam na perfeição o papel de uma família rica e feliz deixando apenas antever alguns sinais da farsa com um ou outro esqueleto no armário, o caso de um carro de corrida arruinado ,escondido na garagem, prova da estroinice e natureza perdulária do Eduardinho.

Naquele dia Fraulein impacientava-se deveras porque nunca mais ninguém se levantava.Vieram à vez em robe almoçar tardíssimo e começaram a tomar banho e arranjar-se depois das quatro da tarde para estarem prontos para receber os convidados ás sete.As criadas de levante desde as seis da madrugada tinham-se esfalfado nos preparativos e já estavam completamente exaustas àquela hora.Frankelina a rainha da casa, tinha rezado na capela do primeiro andar para que a recepção corresse bem.

Às sete em ponto, o casal Taborda cheio de anéis de brilhantes e diamantes e vestidos a rigor colocaram-se a postos no hall para receber os convidados.

Os primeiros a chegar eram sempre O Doutor Juvenal (Frankelina gostava de se dar com médicos que representavam para ela o cúmulo da sabedoria) e a Dona Higierne, sua mulher que aparecia de chapéus exóticos,naquela ocasião com uma capeline negra muito larga, em grande estilo.

Cumprimentaram-se efusivamente.

Depois chegaram o Doutor Saraiva com uma bonita cabeleira toda branca e a Dona Alda, uma simpatia de lady com a voz de falsete.

-Que encantador! Que encantador!

Trocavam graças e elogios.

O casal Cabral veio a seguir.Frankelina ficava inquieta com receio que o marido cometesse uma gaffe como quando os quatro tiveram que parar durante um passeio no Cadillac porque um rebanho se lhes atravessou no caminho e observou “Olha a família Cabral!” e ela teve que lhe dar um beliscão à socapa.

O irmão de Frankelina, gerente bancário, e a mulher uma senhora possidónia e muito estúpida acompanhados da filha, sobrinha e afilhada dos anfitriões, Lourdinhas deram à costa pouco depois e o desfile de convivas continuou em intervalos regulares.

Depois de umas taças de cup foram encaminhados para a sala de jantar onde se serviram as sanduiches de foie-gras, queijo e fiambre, os rissóis de camarão, os pastéis de massa tenra e os croquetes de carne, antes da terrina de canja de galinha do campo e do prato quente de soufflé de marisco.

Mas o momento alto da festa era quando as primas Barba faziam a sua grande entrada talvez como as três irmãs Gabor, hungaras de origem, nas grandes parties em Hollywood.

Sempre um frou frou de sedas e de rendas e que elegância e que classe demonstravam!

Viviana entrava primeiro, alta,distinta,o cabelo pintado de ouro velho, olhos de um azul celeste, elegantíssima, toda de negro com uma coifa na cabeça e os pulsos cheios de pulseiras finas e escravas de ouro.Habilmente maquilhada , com um baton vermelho Bordeaux ,um gloss brilhante e uma voz afectada mas pôdre de simpática a cumprimentar todos com uma deslumbrante echarpe de seda preta.

Logo a seguir Francisca a que todos chamavam de Fanny, ligeiramente mais baixa mas no resto, em tudo similar à irmã acompanhada do marido, um cavalheiro com um sorriso seguro e uma pose cheia de estilo.

E finalmente Pilar, a eterna noiva mas sempre escoltada por diferentes candidatos, nervosa, astuta e a enfant terrible do trio com uma veia poética e louca mas com um toque de sedução que cativava multidões.

Elas ofuscavam todas as mulheres presentes e atraíam a atenção geral num abrir e fechar de olhos.Riam alto, viravam a cabeça para um lado e para o outro, gracejavam e toda a gente correspondia como que hipnotizada e manipulada por cordeis invisíveis.

Fraulein, a setter irlandesa , ia ladrar para o jardim, tonta e enfadada com tanta gente.

A festa era um sucesso e durante um mês não se falava de outra coisa.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 23/07/2019
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