A ESTRELA DA LAJE

“Quem invadiu a minha casa!? Demônio, víbora, vagabunda, prostituta barata! Por quê a minha luz e água tá cortada!? Por causa de gente sem vergonha! Que não me deixa em paz, bando de vermes, seus lixos”!

E assim a atriz lúcida, dona da voz do cotidiano, abria o seu discurso. No seu palco próprio atuava como ninguém, chamava a atenção de toda a vizinhança, porém, ninguém ligava. Que pena! Um desperdício de talento nato.

E entre a paisagem verde e concreto havia Expedita: moça a qual morava perto daquele grande talento dramaturgo, e como passava o dia inteiro em casa também ouvia e via atentamente aquelas performances chamativas, com direito a troca de figurino e tudo mais. Ela poderia sentir o ódio incorporado naquela atriz ao alto, onde volta e meia passava pro segundo plano do palco e voltava à frente. E numa atitude súbita soltava seu texto naturalmente, agora de rosa...

-Policia incompetente, não faz nada, nada. Os bandidos invadem a minha casa, e fica por isso mesmo!!!

-Cala boca! (Vozes de quem não entendia sobre a arte da dramaturgia greciana à brasileira)

-Cala boca é o caramba! Você não manda na minha boca, seu preto favelado, seu lixo!

Concordo que suas falas eram bastante ofensivas, mas muito bem interpretadas. E Expedita paulatinamente a admirava e pensava: porquê esta estrela não estava nas novelas da TV ou no palco do Teatro Municipal brilhando…a mesma resolveu subir o morro passando em frente à casa daquela atriz para ver de perto a encenação, e simplesmente ficou assustada, como dizem por aí, ficou bege! Tal atriz tinha um olhar maldoso, pesado, tudo era escuridão no seu lar. Numa espécie de medo misturado com admiração por esta diante de uma estrela, Expedita não teve coragem de pedir um autógrafo e continuou subindo. Olhou para atrás puxada por uma risada espetacular, variando os gestos, a expressão facial... E se convenceu de que a estrela da laje apenas vivia por inteiro a personagem, coisa que nem todo amador consegue atingir.

E naquele cenário periférico ao qual a estrela da laje se encontrava, tinha pouca probabilidade de brilhar em outros palcos. Ninguém dava a mínima. Mas aos poucos esta situação foi invertendo, devido ao explícito talento daquela mulher, todos os dias dando o seu show mais completo possível.

Expedita, sua fã já de cara, não se contentou e fez mais do que qualquer fã faria. Toda a galera dos anos 2000, em especial, se encontrava no point: a Praça Roosevelt. A jovem expedita era simpatizante da arte e se envolvia com diversos tipos de artistas, fazia parte por diversão de um grupo de jovens que desenvolviam trabalhos artísticos avulsos pela cidade, raspando as migalhas das verbas culturais do governo. E assim caminhavam, se a arte não brotasse e resistisse, hein, o que seria de nós?! E voltando, Expedita então resolveu pedir ajuda para os seus amigos artistas.

-Amigos, vocês não vão acreditar! Eu achei a personagem perfeita para peça de vocês.

-Qual? A gente bola tanta peça (risos)

-Aquela da mulher sem alma...

-Nossa! Expedita você sabe da responsabilidade desse papel, todas nós do grupo tentamos ser a mulher sem alma, e ninguém atingiu tal ápice dramático. Papel dificílimo.

-Mas eu encontrei a atriz perfeita mesmo. Ela é minha vizinha.

-Ah então marca com ela um teste pra esta semana ainda, pergunta primeiro, lógico, se ela quer. Louca eu já sei que é, pra se encaixar na personalidade dessa personagem...

-Deixa comigo! É um bom motivo para eu me aproximar dela.

E Expedita se empolgou, e tomou mais um vinho e se despediu da galera do teatro, da música, da dança, da Praça Roosevelt...pensando já no grande motivo que tinha para ter um diálogo com aquela atriz admirável. O plano era ir logo de manhã, mas tinha uns brigadeiros para fazer e foi à tardezinha.

A jovem caminhou uma rua, dobrou a esquina e chegou na porta da estrela da laje, aparentemente tudo tranquilo. Bateu as palmas, chamou: Oh de casa! Oh de casa! Havia um corredor até a porta, muito escuro, inclusive. Num susto, a estrela vem surgindo lentamente. E Expedita movida pela arte, medo algum apresentava. Tudo para ela era encenação, emoção e charme de gente talentosa. Era um pouco louca, paranoica.

A Estrela da laje, se aproximava com os olhos firmes, extremamente estranhos:

-Quem é você?

-Expedita (num gesto estendendo a mão) tudo bem?

-Por enquanto, não.

-Mas vai ficar agora com um convite que eu tenho a lhe fazer. Posso entrar?

-Que convite é esse?

-Olha, seria bom eu entrar, sentar e explicar.

A Estrela desconfiada, como se estivesse calculando mentalmente os próximos passos, abriu o portão e liberou a entrada. Foi o começo do fim. A Expedita foi entrando já conversando e acompanhando a dona da casa, subiu até a laje, queria também está lá naquele palco tão real de tijolo e cimento. E quando ficou frente a frente com a Estrela, sentiu uma energia maliciosa e pesada. Diante de toda uma anatomia humana desgastada, olhos vazios, penetrantes e silêncio ensurdecedor, houve um súbito congelamento. Porém, Expedita seguiu com o plano...

-Você é uma ótima atriz, e você sabe. Então, quer fazer um teste para uma personagem protagonista na peça dos meus amigos do teatro?

E uma espécie de evocação do mal foi se instalando no corpo da Estrela da laje, e ela começou falar sem parar em forma de sussurros.

-Eu vou te matar, matar, matar, matar...sua vadia, desgraçada. Me deixou na escuridão, sem água, sem luz, sem luz...sua vagabunda, sai sai sai da minha casa, sai da minha casa!

Enfim, Expedita se deu conta de que aquela atriz era real, a verdadeira mulher sem alma, nua e crua, famosa no seu mundo, o mundo dos remédios tarja preta, da escuridão total, do desprezo e loucura. A luta dos demônios num corpo que já não sabia onde estava, uma cabeça que não pensava e emoções que não se entendiam.

E quando Expedita cai em si, está com os braços fisgados pelas unhas daquela louca, vítima de uma força compulsiva, seu corpo foi jogado do alto da laje, agora caindo e rolando no chão. A periferia inteira paralisou para ver aquela cena assustadora. Fim de todos os espetáculos.

(A estrela da laje In. Contos de [des]encantos)