Conto de viagem
Conto.
A desgraça da tecnologia
O ônibus não atrasou. Aliás, chegou antes da hora. Linha Acaraú/Fortaleza. Indo deixar meu pai na casa de uma irmã minha e pegar, quem lá está. Os dois grandes amores da minha vida. Minha esposa e nosso neto. Dois amores meus.
A poltrona é a 14. Encostada da 13. Dizem que 13 é o da sorte. Desta vez foi o 14.
Minha colega de poltrona, a moça da 13, é bonita. Uma coisa que reparo logo nas mulheres. A beleza. Ora. Não há mulher feia. Pode haver mal'amanhada. No entanto a mina é bonita.
Acidentalmente nossos cotovelos se enroscam. É a única comunicação que temos.
Ela está muito à vontade. Calça jeans. Daquelas que as pessoas compram depois de rasgadas. Mas não muito. Poucos rasgões. Coisa da moda mesmo.
Enquanto o ônibus corre, mais parece que as árvores são quem corre. Lembrei de dois malucos que viajaram de ônibus pela primeira vez. Enquanto andavam um deles observou que as árvores andavam mais rápido. Então o outro disse que da próxima vez iriam de árvores.
A mina continua a vontade. Apesar do pouco espaço mantém as pernas espalhadas. Parece meus alunos em sala quando espalham as pernas noutras carteiras.
A temperatura é agradável. O ar não está congelante. Inda bem. Pra não dá vontade de agarrar ninguém. É, porque o frio quando é grande até os cachorros se amontoam pra se aquecer. Isso chama-se sobrevivência.
Por alguma razão ela ajeita o cabelo e o amarra com uma liga. Mas não me olha. Eu, enquanto escrevo, a observo de rabo de olho. Vontade de conversar. Só isso.
É aí que entra a tecnologia. Apesar de também está usando, mas apenas para escrever, ela hora ver vídeo, hora ouve músico. Os ouvidos entupidos com fones. Como falaremos?
Me lembrei da Samara nesse instante. E de minha mãe. Apareceu uma rã na janela 9. Por isso lembrei de Samara e de mamãe. As duas morrem de medo de rãs. Na poltrona 9 tem uma senhora de cabelos brancos. Na 10, uma jovem. Na minha direita, na 16, outra mina bonita. Estou arrodeado de mulheres que não me dão bolas.
A rã prossegue suas pegadas frias e melosas. Causam arrepios em quem lê. Meu cotovelo às vezes enrosca. Às vezes o dela.
E a rã prossegue. Já imaginei que ela vai pular encima de alguém. Está uma cadeira a nossa frente. Desejava eu que não pulasse na mina do meu lado. Não sei se tem medo. Provavelmente. Ela olha o Android, mas não me olha. E a rã pulou no cotovelo da senhora da 9. A outra deu um grito. Não daqueles alarmantes. Soube se contentar. Mas a mulher ficou meio aflita com o cotovelo pra cima. Ninguém socorria. Então, cavalheiramente, peguei a rã do cotovelo da senhora e a joguei no piso do ônibus com força e ela morreu do impacto.
Já estamos em Itapipoca. Por traz da igreja e o ônibus faz o entorno numa melodia redonda. A criatura tá quase de costas pra mim. Uma freada brusca e meu A Bagaceira quase cai do meu colo.
Estou esperando a luz do dia para eu entrar no A Bagaceira. O Américo me espera e já chegamos na rodoviária. Vou dar uma pausa e tomar um café.
Falei com a nina. Como ela tem de passar por mim, perguntei se ia descer. Falou que não. A voz é tão linda como a pessoa.
Partimos e agora vou ignorar minha vizinha de viagem. Me deliciar no conto do Américo e conversar com Soledade. Soledade é uma mina maneiro. Do romance de Américo.
Se houver fato novo falarei noutro conto.
Por enquanto a rã está morta, a mina está quieta olhando pela janela e eu meio deitado na poltrona 14.
Este conto vai ser publicado assim como os mais de 300 textos que já escrevi.
Tem um homem feio na minha frente. Também nao sou bonito, mas não reparo na minha feiura. Só na dos outros. Também acho homens bonitos. Nada demais. Tenho inveja de homem bonito. Porque queria ser bonito. Mas, não vou falar de homens bonitos. Não é meu forte. Isto é assunto pras meninas.
Levantei a poltrona. As costas cansaram.
A mina está batendo no celular. Como se fosse um ritmo musical. De fato o é. Ela ouve alguma coisa melodiosa.
O sol já saiu, mas as nuvens o encobre. Ele está na altura de um palmo.
A Serra no lado oposto espera o sol para expulsar sua umidade noturna. O orvalho lacrimeja e mereja as beiradas do brejo e alimenta as nascentes do Quandu.
Ouço sons de dedos. É a mina estalando seus dedos finos. A do lado direito está dormindo. As pernas nuas. Parece minhas alunas quando é permitido ir à escola á vontade. Não gostam de calças.
As árvores correm no sentido oposto. Parece que estão apressadas em passar.
Regularam o ar. A temperatura baixou e meus braços nus estão com frio.
Soledade ainda dorme. Por isso não entrei no A Bagaceira.
O sono de Soledade me alcançou no Umirim, mas não posso dormir. Parece que estou na estrada da escola. O ônibus sacoleja tanto que dói minhas entranhas.
Queria mesmo ler um relato dos meus alunos.
Um Conto, mesmo pequeno, mas cheio de detalhes. Os detalhes são a vida e a beleza do conto. Fica meias poético, mais romântico, mais emocionante, mais literário. Gosto de literatura. Detesto os textos didáticos. São antipáticos igual a velhos rabugentos. Os textos literários são legais. O A Bagaceira uma delícia.
Tragam-me textos. Contos de férias. Vale pra todos. Samara, Juliana, Ana, Júnior. Este viajou muito. Tem um livro pra contar. Yank, Vítor, Igor, Letícia, Aparecida e todos vcs. Relatem um dia de férias. Fico esperando. Mesmo que seja a vida de uma barata. Mas escrevam.
O ar está congelante, estou com alergia e minhas narinas merejam. Está muito chato. Queria um café quente. Nessas horas lembro dona Auricelia e seu café das 7.
Já esqueci a mina. A tecnologia é quem manda na gente. Somos mais de 30 pessoas e apesar de está roçando o cotovelo noutro cotovelo, por questão de espaço, me sinto solitário. Porque trouxemos a caverna pra dentro de nós.
Infelizmente somos uma geração morta. Nos matamos a nós mesmo.
A única coisa que tem vida aqui é o ônibus. Ele anda, ronca e balança interagindo com a gravidade e com o espaço. O vento é expulsado com a velocidade de sua força e nesse rasga vento vamos rompendo quilômetros e encurtando a distância.
Inda bem que a tecnologia não tirou os motoristas, mas muitos trocadores já foram substituídos pelos computadores.
No Japão, muitos homens preferem mulheres mecânicas. Compram bonecas e não querem as mulheres. Não tem coisa pior do que ser substituído por alguém. Mas ser substituído por máquinas tecnológicas é algo impensável.
Professor Carlos Jaime