TRINTA E TRÊS ANOS DEPOIS

Os pátios do liceu eram durante as aulas recintos ao ar livre silenciosos, belos e calmos, ladeados por plátanos de folhas amarelecidas com o dealbar do Outono.Até os pássaros pousavam enquanto o velho reitor, um homem alto de cabelos brancos caminhava inspeccionando a ordem reinante com um molho de chaves que ia fazendo chocalhar de tempos a tempos, dando sinal ao longe de que estava sempre alerta.

Mas quando a campainha tocava com um retinir estridente, anunciando o intervalo os pássaros que se refrescavam nas pequenas poças dos canteiros, levantavam voo e partiam à debandada.

E os alunos saíam das salas apressados e corriam à cantina para comprar bolas de Berlim que comiam com a boca cheia ou corriam, aflitos,até aos planos inclinados que conduziam aos urinóis ou iam ainda prostrarem-se em pequenos grupos a meio do pátio a conversar.Alguns, preferiam desontorpecer as pernas e andar ao longo dos passeios que davam acesso às salas de aula e às escadas que conduziam à galeria do primeiro andar.

Era um liceu exclusivamente masculino nos anos sessenta, localizado no centro da capital.Ganhara fama de constituir um modelo de rigôr e disciplina com estágios profissionais a decorrer orientados por metodólogos.

Havia professores de ar grave e sisudo com fatos cinzentos e gravatas sóbrias e professoras de saia e casaco, écharpes e óculos escuros que saíam depois em passo elegante rumo ao corpo central do edifício onde se situava a sua sala que pegava com a Biblioteca.

E havia ele que se destacava pelo seu aspecto ainda muito jovem,magro, sempre vestido de negro, de óculos escuros de lentes verdes e a sua gola branca de padre a impor respeito e espanto.O Professor de Religião e Moral, a única disciplina comum do primeiro ao sétimo ano dos Cursos Geral e Complementar dos liceus com porta de acesso ao ensino universitário.

Quase nunca conseguia chegar a tempo à sala de professores para tomar café ou conviver com os seus pares por que um magote de alunos seus fãs, deleitados com o estilo descontraído e bem disposto e com a resposta pronta e bem humorada, acompanhava-o desde a sua saída tardia da aula, numa alegre cavaqueira o que fazia com que quase todos os outros docentes o olhassem de lado, desconfiados e com laivos de ciúme de tanta popularidade rapidamente conquistada.

O jovem Padre Rui era empolgante nas Aulas, trazia temas do quotidiano a debate, era um “advogado” persuasivo e convicto dos bons princípios e das grandes causas.

- Às vezes sinto vontade de chegar ao pé de pessoas cruéis e impiedosas e dizer-lhes “Desculpe, é uma pena que você exista.Se você não existisse, o mundo decerto que seria um lugar melhor”.

Utilizava ajudas audiovisuais na peroração o que era completamente inovador para a época - slides, gravações e música.Recorria a metodologias activas como simulações, role plays, estudos de caso e trabalhos de grupo.

Um dia, os alunos encontravam-se sentados em cima do estrado e ele numa carteira e outros de pé a assistirem como público no meio da sala e o Reitor entrou como costumava fazer sempre, sem avisar.

- O que é que se passa aqui?

O Padre Rui levantou-se e retorquiu com um ar muito sério:

-Bom Dia!Estamos a simular um julgamento.Sobre o Abuso.O arguido é um tirano.O Sr Reitor dar-nos-ia a honra de assistir?

Por momentos, seguiu-se um silêncio de cortar à faca e depois sua eminência tentou , numa atitude de mais/menos, do alto da sua incontestável superioridade, dar-se ao luxo de um gracejo irónico:

-Ah senhor Padre, nem o via.É que parecíamos – conjugava sempre os verbos na primeira pessoa do plural – assim espalhados pela sala e fora do lugar, parecíamos todos uns idiotas! – e retirou-se muito digno e teso que nem um carapau.

O Padre Rui organizava encontros de reflexão, eventos que aglutinavam a juventude na consciencialização de um mundo injusto que urgia corrigir e promovia retiros ocasionais durante os fins de semana para a análise mais aprofundada das grandes questões do foro ético.Nem mesmo o saudoso Robin Williams no filme de Peter Weir conseguiria com a personagem do seu lente das obras de Shakespeare full of passion chegar perto do carisma do jovem padre, uma figura desconhecida e única de autenticidade e que ia permanecer inesquecível na memória de alguns dos seus alunos.

Mas os tempos eram de ditadura salazarista e do estado fascista e não tardou que dois agentes da Pide batessem à porta da Reitoria para exigirem ao Reitor do liceu que destituísse o novo professor de Religião e Moral por comportamento subversivo e altamente perigoso.Tinha havido a denúncia que ele tocara numa das aulas a célebre trova “Os vampiros” de José Afonso”Eles comem tudo/eles comem tudo/ e não deixam nada…” denúncia feita por um respeitável cidadão pai e encarregado de educação que via no Padre a encarnação do Diabo Comunista capaz de corromper o filho gordo e anafado que já demonstrava sobretudo uma clara inclinação para bufo e delator.

João era um dos outros e muitos dos alunos, magricelas e de óculos para quem o Padre era um modelo, um exemplo, o amigo com quem sempre sonhou e que gostaria de ter e tremeu de revolta ao descobrir a causa misteriosa da sua substituição a meio do período.Rui tinha sido dispensado, confiscada a sua cédula profissional e proibido de leccionar.Como Sócrates na Grécia Antiga acusado de corromper a Juventude.As altas hierarquias eclesiásticas não moveram uma palha em sua defesa.

E foi assim que o Padre Rui aos vinte e nove anos desapareceu.Sumiu do mapa.

*

A verdade, essa João só veio a saber muito tempo depois.

A notícia da sua destituição correu célere no meio da Igreja e o Padre Rui foi convidado a deixar a diocese em que era pároco numa das igrejas.Ficou sem ocupação e sem sustento.Decidiu aceitar umas economias postas à disposição pela família e emigrar para França.Aí comeu o pão que o Diabo amassou.Trabalho braçal.Fome.Solidão.Noites ao relento e a perda irremediável da sua Fé.Lutou para sobreviver.Tentou aguentar-se.Fumou, bebeu e foi às putas.Com trinta anos, sentia-se um falhado e, uma noite escura e fria de inverno tentou atirar-se de uma ponte em Toulouse.

Foi salvo por um triz por um conterrâneo também emigrante de quem se tornou amigo e que o exortou a não deixar-se vencer na adversidade, contando-lhe pela noite dentro a sua triste história desde que desertara do exército português para fugir à Guerra Colonial e viera a monte até á fronteira com a Espanha.

Um outro amigo de Lisboa convenceu-o a voltar para Portugal, assegurando-lhe logo um emprego anónimo no escritório do pai.Ele aceitou e voltou a respirar o ar da sua terra.Resolveu estudar de noite no estatuto de trabalhador estudante.Conseguiu equivalência entre algumas cadeiras do seu curso superior de Teologia com que se formara padre e empenhou-se em concluir o curso de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade Clássica.

Lá conheceu Cândida, uma outra estudante, dez anos mais nova que começou a apaixonar-se por ele discretamente.Mas no dia em que soube quem ele tinha sido ficou presa de um desejo tão intenso e ardente que não descansou enquanto no auge da excitação não o levou para a cama, Pouco depois casaram-se e ela conseguiu engravidar imediatamente.

Rui era outro homem.Candidatara-se e conseguira ser seleccionado para um lugar nos Recursos Humanos de uma sólida empresa do ramo industrial e em meia dúzia de anos ocupou o cargo de Diretor de Pessoal.Não voltou a entrar nunca mais numa Igreja nem quis baptizar a filha.A sua vida de resto parecia desafiar o ideal de tranquilidade e conforto de uma família burguesa da classe média.Carro e casa própria num conceituado condomínio da cidade.

*

Trinta anos depois um belo dia, Cândida chegou a casa e mostrou-lhe uma revista de Formação.Dela constava um artigo com o título “Para além das palavras” em que o autor, um consultor empresarial exaltava emotivamente os grandes mestres que tinha tido ao longo da vida e que tinham contribuído para o sucesso da sua carreira e referia-se a ele, o seu antigo professor de Moral como um génio de que ele ansiava há anos saber o paradeiro.

- Vou ligar para a revista.Quero agradecer a este João que, não há dúvida, foi meu aluno no Liceu há mais de trinta anos.

- Não é preciso.O meu colega Fernando conhece-o.Mostrou-me o artigo porque desconfiou que ele se referia a ti – observou Cândida.

Rui e João combinaram almoçar um dia num restaurante simpático, perto das Avenidas Novas.João chegou cedo e levantou-se para lhe acenar quando Rui entrou e olhou em volta, sem saber para onde se devia dirigir.

- Caríssimo Dr Rui.Está surpreendentemente na mesma como há trinta anos quando foi meu professor.Que prazer em revê-lo!Não pode imaginar o que este encontro representa para mim.Eu tinha catorze anos na altura por isso devo estar bem diferente.

Sentaram-se a olhar intensamente um para o outro.

- Bem, é verdade , não me lembro…mas a tua voz soa-me familiar.Para já tenho a sensação estranhíssima que nos vimos ontem…Ah!...E por favor, trata-me por tu.

- Todos estes anos, nos momentos mais negros e mais difíceis, quando não sabia que caminho tomar nem que opção deveria escolher, pensava em ti e sentia-me protegido e orientado…Verdade!

Ele mostrou uma expressão incrédula.

- Tenho que te dizer uma coisa, João.Eu já não sou católico nem crente de qualquer outra religião.Como eu te contei resumidamente ao telefone a minha vida deu muitas voltas.Já tenho uma neta.

- Para mim isso não muda em nada a essência da pessoa nem o que eu sinto por ela.Também espero vir a ter um neto em breve.A minha nora está de esperanças.Mas…tu não sabes mas salvaste-me a vida.

- Impossível.Como?Não dei por nada.

- Há uns anos, estive bastante deprimido, no fundo do poço e numa ocasião tentei suicidar-me.Do nada, surgiste na minha mente e gritaste “Não faças isso.Eu também não fiz.”

Rui encostou-se na cadeira a digerir aquela confissão singular que desnudava em parte a sua própria tentativa anos atrás em Toulouse.Depois chegou-se para a frente e estendeu a mão ao homem mais novo.

-Pelos vistos, não devo ter sido tão mau professor como a Pide apregoava.

João tomou-lhe a mão e apertou-a.Ambos sorriram com afecto.E Rui disparou:

- Tens ar de bom garfo e disseste que conhecias o restaurante.O que é que recomendas?Estou com uma certa fome.

E ambos desfizeram os guardanapos.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 12/07/2019
Código do texto: T6694504
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