PERFUME DE SAFO
Ele tinha-a conhecido eram ainda ambos muito jovens durante a gravação de um programa na ex Emissora Nacional.
Um pesadelo em direto em virtude da gravação que haviam feito ter ficado com problemas e eles terem que repetir no próprio dia numa emissão em direto.Um conto infantil de Natal.
A produtora e directora, uma espécie de valquíria decadente e vagamente sensual, escritora de abomináveis romances côr de rosa, Maxine du Veuzit tinha entrado literalmente em histerismo batendo com tanta força com o seu célebre anel de brilhantes falsos que conseguiu estilhaçar por inteiro o vidro da câmara anecóica e o elenco teve que transladar-se de emergência para outro estúdio de som, minúsculo em que todos mal cabiam, apertados como sardinhas numa lata de conservas.
Voltaram a encontrar-se por acaso quando finalmente o show terminou e correram pelas escadinhas da rua de São Marçal que davam acesso a São Bento junto à Assembleia para apanhar o mesmo autocarro de regresso a casa.
A conversa começou desastrosamente:
- Prezada Ovelha(a personagem dela na emissão), posso sentar-me ao pé de si?- perguntou ele.
- Por quem é senhor pastor.Com certeza.
Miguel tinha treze anos e Joana dezoito mas ela era capaz já desde essa altura de criar uma empatia voluptuosa com qualquer perfeito estranho.Ele armou-se em cavalheiro e pagou-lhe o bilhete.Ela agradeceu, comentando:
- Mas eu sou mais velha, quase uma velha… comparada consigo.
Ele achou-lhe imensa graça e sentiu uma paixoneta nascer pela jovem e lindíssima aspirante a actriz já cheia de ideias sobre a sua carreira futura.
- Do que eu verdadeiramente gosto é de Teatro.
- Mas no Teatro repete-se a mesma coisa todos os dias – contrapôs ele.
- Ah não!Um Actor aprende sempre algo novo e surpreendente em cada espectáculo.E você, quais são os seus planos?
- Talvez Medicina.Ainda não sei.
Conversaram durante todo o trajecto.Ela frequentara um Colégio de Freiras que quase a asfixiara, entrara para a Faculdade de Letras que também a aborrecera e transitara para o Conservatório para tentar uma carreira artística e escandalizar toda a família.
Ele acompanhou com extremo interesse o seu percurso e evolução fulgurante ao longo dos anos, sem nunca mais se encontrarem.
O que a fazia uma jovem tão especial?Era indubitavelmente uma beldade com um ar aristocrático e com uma voz calma e bem timbrada…e com qualquer coisa mais.
Começou por conseguir um pequeno papel numa peça dirigida por um reputado e temido encenador e foi logo elogiada pela crítica.De seguida, venceu um concurso para locutora de televisão e começou logo a apresentar os jornais da noite, festivais da canção e outros eventos de gala.
Elegante, segura e livre…
Joana deslumbrava e sobretudo ousava sempre no que fazia.
Apareceu em topless e tanga numa produção de uma peça de um dramaturgo famoso, fez furor nos bares gays da cidade puritana , teve um romance badalado com uma outra actriz assumidamente máscula e ambas conseguiram um programa em horário nobre na estação televisiva e co-protagonizaram uma peça sobre uma escaldante relação lésbica entre duas marginais.
Os casais hétero conseguiam bilhetes na primeira fila pagando uma pequena fortuna no mercado negro para as ver trocar um beijo na boca, ambas semi-nuas no centro baixo e saíam do teatro tão excitados que eram surpreendidos pela policia a fazer sexo oral nos carros estacionados nas avenidas circundantes.Ela por si só conseguia provocar no público masculino longas erecções doridas…
Mas fartava-se depressa das namoradas e dos projectos muito demorados.
Pousou para uma célebre pintora de meia idade que ficou tão impressionada com a sua estonteante beleza que rompeu um relacionamento de anos com outra mulher que desesperada tentou suicidar-se com veneno para ratos.
Zuzu, a artista plástica começou com palpitações e ganhou um diagnóstico cardiacamente vaticinador de arritmias e insuficiências.Estava irremediavelmente apaixonada.
Com a sua sinceridade desconcertante e uma ternura delicada e sensível Joana despediu-se da outra logo que a obra de arte foi concluída, confessando que as mulheres mais velhas não faziam o seu género.
O empresário mais famoso da capital andava desvairado á procura de uma jovem para contracenar com uma grande actriz ,Pilar Reboredo que fazia o seu come back depois de ter sido vítima de perseguições injustas e infundadas com o 25 de Abril em que era associada ao fascismo e à ditadura, e ela foi a escolhida.
- Tem que ser ela.Não há outra.Só ela tem a classe e o estilo para fazer frente à Pilar.
Veio um encenador da Itália para as dirigir.
O espetáculo foi um estrondoso sucesso, mantendo-se vários meses com lotações esgotadas.
Depois ela apaixonou-se por uma cantora lindíssima e fizeram um disco juntas com canções cujos versos – talentosos e perfeitos - foram escritos por Joana.
Foram casar-se ao estrangeiro no auge de uma paixão descontrolada e louca.
Ela reiventava-se cada dia, mantendo a sua feminilidade, um perfumado encanto e sobretudo um certo mistério indefinível.
Protagonizou o filme mais visto até essa data com uma famosa cena de sexo numa estrada à meia noite em que era possuída por um galã louro, alto e de olhos azuis em pleno céu aberto.
E a cena repetiu-se.Respeitáveis casais casados ficavam tão arrelampados e transidos que eram apanhados a fazer sexo em publico, á saída do cinema.
Entretanto, ela cansou-se da cantora e voltaram ao estrangeiro para se divorciar mas, como sempre, sabia habilmente dizer adeus, despedir-se e ficar amiga dos seus ex amores.
Fez revista no Parque Mayer.Foi convidada especial de grandes produções de reputados Grupos Independentes.
E os anos foram passando inexoravelmente..
Comprou uma casa, relativamente afastada da cidade numa elegante vila cosmopolita e isolou-se.Uma espécie de Greta Garbo à portuguesa.E dedicou-se à escrita.Inteligente e quase culta.
Quando já tinha passado a menopausa resolveu assumir publicamente a sua orientação sexual e começou a aparecer mais raramente em participações especiais e projectos de qualidade cuidadosamente escolhidos, vozes off e destacados eventos culturais e artísticos.
E um belo dia, ambos nos seus sixties, assomou no consultório de João já médico conceituado para uma consulta de ginecologia.
A empregada e ajudante ficou ansiosa:
- Ai, sr dr não imagina quem chegou e já está na sala de espera com uns grandes óculos escuros.
- Pode mandar entrar.Ah e Eugénia por favor, evite os diminuitivos…
Eugénia esqueceu-se do pedido e das recomendações e durante todo o processo não conseguiu deixar de evitar, fazendo sorrir a velha estrela “Pode ir fazer um chichizinho…abra mais,mais as perninhas…isso, assim!”
Depois do momento de ouvir as queixas seguiu-se a observação minuciosa e os toques de luvas no mais íntimo e sacrossanto do corpo, daquele corpo, aquele mito.
-Já está.Pode vestir-se.Espero-a na sala ao lado.
Não resistiu ligar para o melhor amigo Carlos, a contar-lhe:
- Macacos me mordam.Levaste toda a vida a idolatrar essa mulher e acabas a remexer-lhe nas partes íntimas…Absolutamente tétrico!
- Não sejas javardo.Não percebes nada!
Ela entrou, altiva, envelhecida,enrugada, magra mas ainda e estranhamente avassaladoramente bela.
- Por favor, sente-se.- disse ele.
Houve um minuto de silêncio fugaz e ele realizou”Não se lembra de mim” mas a voz dela despertou-o:
-Então dr devo apressar-me a fazer o testamento?