AS LUZES DA RIBALTA

- Onde estão as açafatas?As açafatas, depressa!

- Faltam cinco minutos para entrar em cena, Senhora Dona Augusta.

- Madame Mariette já está pronta?

- Já e no palco a andar de um lado para o outro.

Augusta deixou-se empoar pelas pequenas.Ajudaram-na a vestir o figurino de Rainha da Escócia a colocar a coroa mesmo a meio da cabeça impecavelmente penteada.Era o seu grande come-back depois de dois anos afastada no seguimento da morte do marido o também actor e empresário Félix Reboredo que não resistira a um ataque cardíaco depois de uma refeição opulenta.

A filha de ambos Pilar Reboredo também actriz viera à estreia e deveria já estar sentada na plateia com o marido e um grupo de amigos.Aliás a fina flor da sociedade portuguesa acorrera para vir ver Augusta no papel titular de “Maria Stuart” de Friedrich Schiller.E no camarote presidencial estaria a assistir a primeira Dama e a filha mais nova por sinal um camafeu com todo o respeito que toda a Companhia fora cumprimentar momentos antes numa pequena sala reservada aos VIPS.

As laterais da Avenida que davam acesso ao Teatro tinham ficado congestionadas com os carros e os táxis que traziam os espectadores.

Augusta Rosa Brazão estava evidentemente nervosa.Ela era uma actriz consagrada de cinquenta e cinco anos e ocupava há anos o lugar de rainha da Arte de Talma no País com a concessão renovada de Teatro Nacional pelo Presidente do Conselho de Ministros o temível professor de Coimbra ,um misto de saloio da provincia e de hábil raposa perigosa ou mesmo, por vezes, de um lince feroz.Ela era fotografada e venerada pela imprensa e conhecida pela sua miopia extravagante e o seu ar taful e janota que dispensava os óculos a não ser durante os ensaios.

Convidara a célebre actriz e encenadora brasileira Mariette de La Rochelle há anos radicada em Paris e que chegara a actuar na Comédie Française para assinar esta versão do drama histórico que opunha Isabel I, rainha de Inglaterra a sua prima Maria Stuart, rainha da Escócia num duelo de titãs.

- Ai que me está a dar uma vontade de ir à casa de banho mas não posso!Vou entrar.

- Merde…Muita merda – diziam os actores ao dirigirem-se ao palco.

O elenco contava com quinze interpretes, havia muitos duques e pagens e guardas do castelo a comporem o ramalhete.

Mariette e Augusta mantiveram uma longa correspondência antes de acordarem no projecto, falaram ao telefone um horror de tempo e Augusta tinha-se deixado encantar por aquele misto de sotaque brasileiro e pronúncia francesa.

Quando se encontraram ambas em Santa Apolónia, a estação de comboios onde Augusta fora esperar Mariette que viera no Sud Express de Paris, fitaram-se por momentos enlevadas e apertaram-se num abraço trémulo e que traduzia a confiança total que desejavam ter uma na outra para garantir o sucesso da peça.

Os ensaios iniciaram-se em Julho, o elenco não chegou a ir de férias e trabalharam com afinco durante o Verão para estrear em Outubro.Lucien, o afectado decorador da moda , como de costume, concebeu um cenário à altura e supervisionou meticulosamente a sua execução.

O tempo passou quase sem se dar por ele.As leituras e discussão das cenas e personagens com o pano de ferro fechado, a marcação em que Mariette se desdobrou em encenadora e atriz , as intermináveis repetições, os ensaios de apuramento, as provas do guarda-roupa sumptuoso que quase tinha arruinado o orçamento, os ensaios de picadeiro, as luzes, a música de Wagner, tudo até ao ínfimo pormenor para sair perfeito.

Meniche, directora de cena já avisara:

-Senhores Actores, aos vossos lugares!O espectáculo vai começar.Avisem o Miranda da cabine.

- A senhora Dona Mariette insiste em chamar régie em vez de cabine.

Horas perdidas, após os ensaios em que as duas se deixavam ficar no teatro até altas horas com o chauffeur ensonado à sua espera.

- Augustine, ma chérie, que estás achar da mise-en-scéne?

- Je trouve tout merveilleux …simplesmente maravilhoso,eu diria mais, sublime.Tu és sublime Mariette.Je t’aime.

A outra voltava ao português afrancesado:

- Somos duas velhas cigarras, minha cara.Estamos a atravessar o portão para o ocaso da vida .Mas ainda mexemos…

- Ah mais oui bien sure.Mexemos sim e de que maneira!

E riam muito, feitas cúmplices.

Gostavam de partilhar um charuto cubano que as fazia tossir moderadamente com a perna traçada e um ar de garçonnes.

Augusta era uma artista e sentia que a paixoneta que começava a nutrir por Mariette podia até ajudar à qualidade do espectáculo.

As luzes da sala foram reduzidas ao mínimo e soaram as doze pancadas de Molière.

A mini orquestra enterrada num fosso à frente do palco atacou com os fagotes, o solo de violino irrompeu com um foco sobre Maria/Augusta que foi saudada com uma ovação calorosa.A casa estava à cunha com a lotação esgotada.

O primeiro acto decorreu sem incidentes, na perfeição com uma movimentação enérgica e rapidamente o público se deixou seduzir pelo conjunto.

O intervalo no foyer foi animado, com os habituais desfiles das damas elegantes, para a frente e para trás a fim de se mostrarem e apreciarem as toilettes umas das outras.

O gongo soou e o público voltou aos seus lugares.

O segundo acto foi glorioso com Augusta e Mariette frente a frente, hipnotizadas, num jogo dramático de arrepiar os cabelos,Ninguém falhou uma deixa.

- Há uma quase tensão sexual entre as duas – pensou o crítico do “Diário de Lisboa”mas não se atreveu a escrever nada.

As jovens actrizes que faziam de aia e dama de companhia da Rainha aprendiam com as veteranas os segredos do métier.

Chegaram ao fim exaustos mas a sentirem que a representação tinha corrido bem.A última fala foi seguida de uma pausa arrepiante interrompida por uma reacção nunca vista do público, a aplaudir de pé, quase a raiar o histerismo colectivo.

-Bravoooo!...Bravoooo!...Bravoooo!

Na sexta chamada para os agradecimentos, Mariette não se conteve e agarrou Augusta nos bastidores.Deu-lhe um ardente beijo na boca que as deixou às duas com o baton esborratado.

O Paiva e o Sales que faziam de Condes de Leicester de outro lado qualquer viram aquilo e ficaram estarrecidos.Nunca na vida imaginavam presenciar um arrojo semelhante com a altiva viúva de Félix Reboredo.

As duas jovens actrizes também, entreolharam--se e ficaram excitadas,com vontade de acariciar os seios uma à outra.O Sales que era meio destravado deu uma palmada nas nádegas do Paiva e soprou-lhe:

- Será que sou lésbico?

Augusta sentia-se zonza de prazer.Não estava á espera daquela investida.Mas, na verdade, tinha sido percorrida por um frémito de sensualidade tão intenso e acometida por um desejo tão severo que tencionava convidar a outra para dormirem juntas nessa noite porque não aguentava esperar mais tempo.

Mariette e Augusta entraram por último no palco, de mãos dadas.Mariette avançou primeiro para receber um solo de palmas e depois era a vez de Augusta que, como sempre, não via nada e tonta e excitada avançou de mais,deu um passo em falso e caiu a pique pelo fosso da orquestra!

-Aiiiiiiiii! – gemeu num grito abafado.

O elenco olhou para o buraco como se estivesse a delirar.

Fez-se um silêncio cortante em todo o teatro.

Pilar dera um grito de aflição:

-Mãe! - e acorreu à boca de cena.

Então, lenta e vagarosamente, içada por dois homens da orquestra, o saxofonista e o dos metais, Augusta emergiu do fosso com um sorriso contrafeito até se endireitar com aprumo e deixar-se ser definitivamente puxada para a ribalta pelo Paiva e pelo Sales que ficaram ofegantes com o esforço.Augusta com a boca de lado murmurou algo no género para os colegas “Eu estou bem.Não me magoei!”As palmas voltaram mais fortes do que nunca,o elenco inteiro agradeceu com uma vénia reforçada.

Alguém comentou alto:

-O efeito da queda está soberbo!Ela morre e ressuscita.Soberbo!

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 08/07/2019
Código do texto: T6691161
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