MÚSICA AO LONGE
A batucada.Ouvia-a ao longe, não resistiu e abriu as janelas vermelhas de ripas do salão que davam para a avenida que ia ter ao Grémio.
Julinha, a empregada passou com o seu lenço na cabeça e sorriu ao vê-la espreitar:
- Então menina não vai ver desfile?
Ela abanou a cabeça e esticou o pescoço.
A multidão tinha agora parado e saracoteava-se num ritmo avassalador a olhar em frente.Durou alguns minutos.
“Não percebo qual é a graça!”.
Necas a sua irmã mais velha assomou á porta, vaporosa e vestida para arrasar.
- Não vens?
-Não!!...Diverte-te.Não estamos no Brasil mas faz de conta.
- Se viemos, temos que aproveitar. – e abanou-se toda, antes de sair para o bafo quente que vinha da rua.
Sempre tinham tido feitios opostos.Dez anos de diferença.Concordado em viajar até Cabo Verde, virem a São Vicente, falar com o gerente da Casa Comercial de que ainda eram sócias por herança.Ambas divorciadas mas em estações diferentes da vida.
Necas, uma quarentona, sentia o mundo como se fosse acabar amanhã.Sempre que vinha até ao Mindelo adorava servir de pombo correio de toda a gente para fomentar os contactos e viver a sociabilidade dos convites para os mais diversos programas.Até transportava uma cana de pesca na cabine e uma prancha de surf no porão.Bel pelo contrário receava comportar-se como as mulheres de trinta anos típicas com um sentimento de superioridade absurdo tão bem retratadas em Balzac.
E então depois da saga de viajar até ao Sal onde invariavelmente todos os habitantes à hora da chegada estavam numa localidade chamada Preguiça a dormir a sesta, tomar um frágil avião a hélice inter ilhas para chegar a S.Vicente a um aeroporto em que só se podia aterrar de dia porque ainda não havia iluminação nessa altura com a hospedeira coitada, muito enjoada e praticamente em greve.Abriu-se com elas.
- O meu dispositivo intra uterino saiu do lugar e agora não sei onde pára e estou com dores no baixo ventre.
-Deve ir consultar um médico com urgência.Um ginecologista.
-Cologistas como esse não há cá.
Chegaram e foram revistadas pela sexta vez, estenderam os passaportes para serem carimbados, mais os vistos enquanto um grupo enorme de gente olhava para os viajantes recém chegados a avaliá-los.
O ar queimava como de costume e um carro de praça conduziu-as até à cidade aos solavancos, por entre os buracos na estrada meia asfaltada , meia de terra.
A partir desse momento, Necas exultava, transformava-se noutra pessoa e a primeira coisa que fazia quando o condutor as deixava em casa era correr à loja para trazer debaixo do braço duas garrafas de whisky.
Subiam a escada com as malas e a Julinha corria a abraçá-las e vinha ajudar o rapaz da loja trazer o resto da bagagem para cima.
Bel ia até ao salão olhar para a fotografia grande do Avô de bigode, o proprietário original da firma.Suspirava e ia para o quarto da suite desfazer a sua mala.
E durante essa semana de férias, tentava entrar o mínimo na rotina frenética da irmã.Alugavam um carro cubano para ir até à praia, uma baía curiosa que era protegida por um estreito que comunicava com o mar e protegia os banhistas de serem surpreendidos quando menos esperavam pela companhia de pequenos tubarões vorazes.
Depois os passeios pelos picos secos, a situação dramática de uma terra castanha avermelhada onde não chovia há anos.Baía das Gatas, Matiota…cenários da saga dos seus antepassados.Giros pelas boutiques,barraquinhas de artesanato…
E depois Necas iniciava imparável as suas voltas e encontros sociais com o vestuto armador de um só barco que trazia e levava mangas e bananas de Santo Antão, com o grupinho dos cooperantes com o Mónica, o Lopes, ambos casados e longe das famílias e a seráfica Miluzinha, a directora do centro português,uma jovem de vinte anos que andava com os dois alternadamente durante a semana e se permitia uma folga ao domingo de tanto ardor sexual suportado e que abria os braços em cruz como que a conformar-se com o seu triste fadário de mulher repartida, e havia ainda mais a família Beja ou Serpa cheia de juízes e advogados com os cursos de Direito incompletos tirados nem se sabia onde e apreciadores de petiscos com picante de ir às lágrimas.Enfim, ela desaparecia literalmente, the lady vanishes, até à hora de jantar.
Bel recolhia-se durante a tarde, ficava em casa, enfiada no salão com um livro trazido que abria e depois fechava ou a ouvir as cassettes de música que Necas tinha trazido e deixado ficar.Aznavour, Bécaud, Charles Dumont e quase todos os discos de Sinatra.Ela ficava ao abrigo da turbulência e do bulício.
As celebrações do Carnaval continuavam durante o dia e a noite, havia dança, coladeiras e mornas, cachupa e cuscus e a população abria-se, desenfreada com o ritmo, roçando as ancas uns nos outros no auge do erotismo espontâneo e selvagem.Depois pegavam-se em pares com os corpos colados num requebro lento, meneado que os deixava húmidos e duros de desejo.Ouvia-se a voz de Cesária Évora cantar nos altifalantes.
Bel observava a cena distante, remotamente, sem participar da festa.Tentava racionalmente perceber a sua cultura e aquele modus vivendi.
Sentira-se incomodada durante o jantar oferecido pelo gerente local, um bode mestiço com a cara comida por sinais e já nos seus cinquentas e muitos e que tivera a pouca vergonha de se fazer acompanhar por uma miúda de doze de quem se aproveitava e que, segundo ele, ajudava a família muito humilde.
Ela nesses momentos tentava entender o porquê das injustiças e das desigualdades gritantes existentes em quase todos os lugares do mundo imperfeito.E como que subia para uma torre de marfim onde ameaçava trancar-se e ficar aprisionada para fugir ao espetáculo.A Necas dissera:
- Calculo como seja difícil ou mesmo impossível à miúda escapar às garras dele.Grande porco.
As pessoas tinham que vender o que tinham para sobreviver.Algumas só dispunham do seu próprio corpo.
Por isso, tremera quando um homem jovem e esbelto de calções e t-shirt desbotada, calçando chinelos de enfiar no dedo reparara nela e se começara a acariciar. E depois tivera o pejo de se aproximar e dizer:
- Para si faço quase de graça.
Ela fugira com receio, imaginou-se na cama com o preto, aquele apolo pobre e sentiu que, para já, não tinha coragem para ceder, libertar-se, experimentar o inusitado apesar de reconhecer que o homem era sem dúvida muito apetecível, sensual e quase irresistível.
Uns amigos da irmã chegaram para os aperitivos, o tal trio dos cooperantes.
Levaram-nas a jantar a Santa Luzia, um restaurante aprazível que dava sobre o porto iluminado.A noite desceu com uma brisa e ela respirou aliviada o ar fresco trazido com o entardecer.
Fez os possíveis por corresponder, manter-se bem disposta, rir das piadas e curtir aquele instante.
O engenheiro Mónica saiu-se com uma observação que a irritou moderadamente:
- Enquanto a Necas vive este clima e este temperamento, a Bel limita-se a assistir de camarote.O que será que lhe vai na alma?
Ela não deu troco e retorquiu tão somente:
-Vou até à varanda apreciar a vista e fumar um cigarro.Já volto.
E levantou-se, foi até ao terraço e aspirou o ar nocturno.E perguntou-se, no mais íntimo do seu ser se o seu destino,fado ou sina não seria sempre e só ouvir… a música ao longe.