Machismo nosso de cada dia
Terapia complexa. Vomitei angústias que me consumiam há muito tempo. Expus minha alma da forma mais nobre possível. Acolhi minhas dores e as abracei para que elas pudessem partir em paz. Tive o desplante de me enfrentar. Visivelmente eu era porta bandeira de mim. Vestia meu vestido preferido - que ganhei de uma pessoa especial. A estampa carregava um fundo negro e o desenho de diversas espécies de flores delicadas. Me sentia livre e leve com ele. Nos pés, o mesmo chinelo marrom. Gosto de deixar meus dedos livres, sentindo o vento, circulando. Mochila sempre nas costas, com um livro, uma garrafa de água e uma blusa de frio.
Eu estava muito longe de casa, e naquele dia isso me confortou. Poderia andar sem precisar cumprimentar velhos conhecidos. Ninguém me pararia para conversar sobre a briga na rua de trás ou sobre o filho do vizinho que voltou para reabilitação. Na Vila Madalena ninguém se olha muito, apesar do lugar exalar certa delicadeza. Galhos quebrados são gentilmente remendados com pedaço de tecidos. Os canteiros de flores são bem cuidados. Os muros das escadarias gritam poesia e revolta de uma forma harmoniosa. Mantiveram repeito pelos grafites, não os pintaram de cinza.
Andei, andei, andei. Me senti incomodada com tantos muros e tão pouca gente nas ruas. Por alguns instantes senti falta de ouvir grito de criança jogando bola, chinelos que formam gols. Então, peguei o primeiro ônibus que passou sentido centro da cidade - assim eu demoraria ainda mais para chegar em casa. Sentei na janela e por todo o trajeto, senti o vento forte bagunçar meu cabelo. Li um pedaço do livro da moça que estava sentada no banco da frente. Observei um moço na rua que fumava um cigarro. Quando percebi que já estava na República, apertei o sinal para descer. Desci e segui andando, com a postura sempre ereta e o olhar sempre erguido. Fui em direção à Praça do Correio, uma caminhada boa que permitiria o respirar do meu ser.
Copan. Biblioteca Mário de Andrade. O cinemão 24h - onde homens saltam rapidamente de lá de dentro como se não quisessem ser vistos. Galeria do Rock. Largo do Paissandu. Praça das Artes. Aquele prédio lindo do correio. Vale do Anhangabaú. Ao fundo, Edifício Martinelli, o rosado construído em três momentos destintos. A caminhada estava aparentemente inócua - mesmo que nenhuma caminhada de uma mulher pudesse ser -, e eu estava bem mais calma do que antes.
Mas chegando ao meu destino - Praça do Correio - fui surpreendida por um homem. Naquele instante nenhuma outra mulher passava por ali, meu olhar atento permitiu que isso fosse reparado. Mesmo com meu 1,75 de altura e meu caminhar firme, ao olhar daquele homem desconhecido, eu era o alvo perfeito. Ele nada disse, serrou os punhos e veio em minha direção para dar um forte soco em meu rosto. Meu desespero me fez desviar e gritar forte:
— SAAAIII!!!!!
Minha respiração entrou em descontrole e meu coração pulsava como se quisesse pular dali para um canto mais seguro. Não pude esperar o semáforo fechar, imprudente corri. Morreria eu, atropela, após tentar fugir de morrer espancada?
Tentei manter o controle para não me perder do caminho. O ônibus que chegara ao terminal me deixaria muito próximo de casa, então entrei. A liberdade que há pouco sentia com o vento bagunçando meu cabelo, deu lugar ao meu choro desesperado de perceber a insegurança do mundo onde vivo. Estava sozinha, apesar de estar rodeada por tantas pessoas. Na mente um filme do acontecido. O medo por mim e por tantas outras. Tantas morreram para que eu pudesse ter os privilégios que tenho hoje. Quantas não conseguiram e não conseguirão correr? Quantas mais irão se sentir desamparadas? Precisarão morrer quantas mais? Até quando nossos corpos andando pelas ruas, irão incomodar os egos masculinos?
O choro desesperado do medo da violação do meu corpo, ainda molha meu rosto.