ME TRAZ UM OVO, VASSOURINHA? (ATENÇÃO-GATILHOS EMOCIONAIS NESTE TEXTO).

Eu tinha sete anos e sob a mesa da sala de aula as pernas tremiam. Era o primeiro dia de aula.

Um ponto fixo na mesa, mais precisamente uma pequena imperfeição na madeira foi onde eu mantive o olhar fixo durante um bom tempo. Talvez não mais do que dois minutos, mas é que, para quem sente medo e ansiedade do novo, dois minutos parece um dia inteiro. E nesse dia inteiro de dois minutos, a professora chegou. Todos tinham mochilas e cadernos sobre a mesa.

Eu nunca fui muito notável e dez minutos após o início da aula, a professora carrancuda percebeu que eu a observava enquanto todos de cabeça baixa copiavam as letras tortas na lousa.

- Cadê o seu caderno? - A carrancuda perguntou.

Apenas afirmei negativamente com a cabeça. Ela arrancou a folha do caderno de outro aluno e me deu.

Eu fiquei olhando pra folha.

Escutei o som de um estojo abrindo e com uma certa brutalidade ela pousou o lápis em minha mesa com a palma da mao. A ponta quebrou. Em silêncio, apenas observei a silhueta dela se afastar. Eu não me lembro de ter conseguido olhar pra cara dela nunca mais.

Da mesa ao lado eu percebi uma mão se aproximando. Com medo de levar uma bronca, esperei ela se virar para olhar. O aluno na mesa ao lado me oferecia um apontador. Ele sorria. Parecia estar feliz naquele lugar que para mim era torturante, era assustador e era apenas a primeira aula, do primeiro dia. O sorriso dele me oferecendo o apontador me fez respirar um pouco. Ele sorria, então, não havia de ser tão ruim assim aquele lugar. Sei lá quanto tempo depois, outra mulher apareceu na porta berrando que era hora de comer. Finalmente.

Em fila indiana no corredor estreito, todas as demais crianças das outras salas se espremiam e a cada ida e vinda, aquelas mulheres enormes nos esmagavam contra a parede. Passo a passo, a fila que parecia não ter fim, ia aos poucos se movimentando. Desde a primeira aula eu estava com vontade de ir ao banheiro e num segundo de fraqueza, puxei o colete branco de renda de uma das mulheres enormes e disse que eu queria fazer xixi.

- Agora, muleque?

- Faz tempo já, tia.

- Eu não sou tua tia, muleque.

Ela disse com olhar furioso e me empurrando para uma escadaria que levava ao andar de cima. Disse para eu ir até o final do corredor. Imaginei que lá haveria um banheiro, mas tudo o que vi foi um corredor vazio e portas todas iguais, pintadas de azul e sem identificação.

Eu desci de volta e já não havia mais ninguém.

Pessoas enormes, portas enormes, muros enormes. Para alguém da minha idade na época, tudo parecia ser o triplo do tamanho real.

Voltei a subir a escadaria. Já sentindo dor de tão apertado, caminhei o mais rápido que pude tentando localizar a porta mágica. O mais próximo de um mictório que encontrei foi um balde de metal, esquecido no andar gelado e silencioso. Foi o que me restou. Quando já estava quase finalizando a mijada mais aliviante que aquele corredor já viu, senti meu couro cabeludo ser quase arrancado.

A mesma mulher enorme que me mandou subir, me puxava os cabelos e tentava falar baixo, sem perder todo o ódio que transparecia em tom maior.

-Mas que merda você ta fazendo, muleque?

Eu não consegui dizer nada.

-Anda, deixa eu limpar. - Ela ordenou já abaixando mais a minha calça azul marinho do uniforme.

Eu não entendi bem o que estava acontecendo, mas ela ficou revezando entre: "Me limpar" com a boca e rápidas olhadas para trás.

Nos próximos seis meses, aquilo continuou, sempre na hora do recreio, do qual eu aproveitava apenas os últimos 5 minutos para engolir a comida antes de nos expulsarem para a sala de novo, como um rebanho recém chegado e ainda perdido.

O aluno ao lado que sempre sorria e fazia questão de me emprestar qualquer coisa sem nem mesmo eu pedir foi aúnica forma de amigo que encontrei naquele lugar.

Toda e qualquer outra criança, aos meus olhos era uma ameaça.

Eu não sabia o motivo exatamente.

Ah, esqueci de mencionar: O garoto ao lado era o Wallace. Ele era negro e muito mais magro do que qualquer um de nós e era sempre o primeiro da fila na hora da merenda quando era dia de ovo cozido. Ele parecia gostar mais daquilo do que qualquer outro Ser Humano. Uma vez, enquanto eu observava de longe uma guerra de ovos cozidos no refeitório, entre um tumulto de aluno e outro, eu o via pegando o que restava dos ovos no chão do pátio e colocando na redinha que ele fazia com a camiseta do uniforme. O uniforme dele sempre estava com uma mancha amarelada. semanas depois, evoluiu para uma marmitinha, que ele trazia sempre no dia do ovo. As outras crianças o chamavam de vassourinha e ele parecia não ligar, parecia gostar e brincava consigo e com os outros, dando-lhes apelidos também, sempre com um grande sorriso no rosto. Ele parecia gostar de sentir que era visto e que pertencia à algum lugar, à um grupo de pessoas.

Ele nunca me deu um apelido, mas quando me chamou de Folinha, por, em outra ocasião eu não estar com caderno e ter que fazer tudo numa folha que, mais uma vez, ele emprestou com um grande sorriso no rosto, foi legal.

Certo dia, fez sol. Eu não saberia dizer exatamente o que havia de diferente, mas era como se conseguíssemos olhar diretamente para o sol sem que isso afetasse a visão. Era uma enorme gema no céu.

O ar parecia diferente na escola também. Mão no ombrinho do colega e enquanto cantávamos o hino nacional no pátio, olhei ao redor à procura daquela mulher enorme. Eu não gosto de chamá-la de professora. Professores não são daquele jeito. Pra mim, ela era só uma pessoa enorme e pessoas enormes não costumam ser exemplo positivo. Não me entenda mal. Ela não era gorda. Ela era enorme. Num sentido de que, naquela idade, toda e qualquer pessoa parecia muito alta perto dos meus 1,40. Sabe quando você reconhece o vilão do Pica-Pau pelo fato da sombra ser maior do que tudo ao redor? Talvez eu esteja sim exagerando, mas, talvez o medo, a ansiedade e pânico que ela me causava, projetava uma imagem muito mais aterrorizante dela.

Naquele dia, Vassourinha não foi para a escola. Era estranho olhar pro lado e não ver aquele sorriso descompromissado e sem motivo, era como se só houvesse metade da lousa.

Já era a segunda aula e eu, que sentava na primeira carteira colada à janela, ainda absorvia o que aquela gema no céu me permitia olhar.

- Pára, pára... - Gritaram lá fora.

Foi tudo o que ouvimos, seguido de um estampido seco.

- Meu Deus do céu... O que você fez? O que você fez?? - Uma voz masculina aos prantos e desesperada lá fora gritava.

Subimos na cadeira e forçamos o máximo a abertura da janela da sala e até mesmo a professora foi curiar. Eu me lembro de ver o Seo Paulo, um homem alto, negro e já de certa idade, que era responsável por abrir e fechar os portões da escola.

Ele parecia desesperado.

Ele estava no meio da rua com as duas mãos na cabeça. Do primeiro andar da escola, apenas víamos um ou outro carro estacionado e o topo de uma caminhonete com trailer cor de rosa.

A porta da sala praticamente explodiu e apareceram mais três professoras chamando a nossa. Elas correram. Ouvimos a gritaria e passos dos demais alunos e também corremos. Descemos os dois lances de escada, atravessamos o pátio e... era como um tsunami de crianças e adultos voltando na minha direção. Gritavam. Clamavam por Deus e choravam. Eu permaneci forte contra a maré. A maré viva. E enfim, cheguei o mais próximo possível da calçada antes das coordenadoras e professoras nos expulsarem para dentro, aos prantos e gritando umas com as outras.

Antes, porém, eu vi a coloração diferente numa parte da calçada e da guia, onde a caminhonete e o trailer estavam estacionados. Entre o trailer e a roda de trás da caminhonete, o Wallace. Bem, eu não o via inteiro, apenas um braço que estava num posição diferente. Estava quebrado. O pneu traseiro, que era duplo, ou seja, nas rodas de trás, haviam dois pneus de cada lado. Sob dois desses pneus: Vassourinha, digo, Wallace. Ou metade da cabeça e do rosto.

Eu me virei e todos, absolutamente todos choravam. Eu andei entre alunos e professoras observando os meus pés. Sem pressa. Duas professoras escoravam Seo Paulo na parede enquanto outras duas lhe ofereciam um copo d'água.

Eu não sabia aonde ir, eu apenas fui. Talvez, estivessem num choque profundo demais tentando assimilar a cena. Ninguém me viu subir os dois lances de escada e depois mais um.

Caminhei com as mãos nos bolsos do shorts e no final do corredor, naquele mesmo lugar, eu a encontrei.

A mulher enorme. Ela chorava descontroladamente enquanto, muito suada, parecia tentar arrancar os já tão emaranhados fios de cabelo. Eu acho que a ultima vez que eu tinha visto alguém chorando tanto, a ponto de babar e verter fluídos pelo nariz, fora eu mesmo, numa birra normal de criança em casa. Era assustador ver alguém tão grande naquela situação.

- Desculpa, desculpa, desculpa, desculpa, desculpa...Eu não vi ele...desculpa.

Ela implorava enquanto o rosto ficava cada vez mais avermelhado.

- Ele vai voltar? - Perguntei, numa esperança sincera de que uns dias no hospital e tudo estaria bem com ele.

- Não, não... Ele virou estrelinha. - ela respondeu de forma doce e angustiante antes de expremer os olhos e chorar ainda mais. Antes de começar a esmurrar a propria testa.

Já não dava pra diferenciar suor e lágrimas naquele rosto vermelho.

- Olha, garoto. Me desculpa. Aquilo que a gente...Que eu fazia com você não é normal. Não deixa mais ninguém fazer aquilo. Aquilo é feio. Eu sou feia. Ta bom? Não deixa. Me desculpa. Eu... Eu tentei fazer com ele também, mas ele correu, não era pra ter sido assim. Eu fiquei com medo dele ter ido pra avenida e ser atropelado, mas eu não vi ele atrás do meu carro. Eu tava tentando salvar ele. Me desculpa, me desculpa...

Toma, segura isso. Eu escrevi aqui. Tudo isso que eu disse. Entrega pra diretora, você sabe quem é? - Ela perguntou já conseguindo respirar melhor.

Respondi que sim apenas com a cabeça.

Caminhei por aquele corredor de volta e antes de descer o primeiro lance de escadas, eu me virei e de relance eu a vi olhando para o teto com duas voltas da corda vermelha da educação física num dos braços.

A folha que ela me deu e que era cinco vezes maior do que a minha mão, foi entregue à diretora que com a mão trêmula, bebia num copo de àgua enquanto um policial falava com ela. O policial correu e sumiu no lance de escadas. Eu encarava a diretora já esperando ser repreendido. Ela tinha olhos de Urubu, como no Pica-Pau e as lentes dos óculos só faziam aumentar o olhar dantesco.

Uma das lágrimas se perdeu na aste dos óculos e a outra desceu direto para o copo com àgua. Ela me olhou e me abraçou.

Logo, os pais dos alunos entraram correndo chamando pelos nomes dos filhos.

A diretora, se abaixou e me olhou fixamente, antes de dizer.

- Está tudo bem, não aconteceu nada, ta bom? Isso aqui não existiu e você não viu ela hoje, ta bom?

Ela se levantou ja com a folha amassada numa das mãos fechada.

Existem muitas formas de olhar para uma situação. A única palavra que encontrei para explicar ela não ter revelado o que o bilhete dizia, foi: Proteção.

Talvez ela quisesse proteger o resto de dignidade da amiga. Àquela altura, devidamente enforcada.

Talvez ela quisesse proteger a mim e poupado a já sofrida familía do Vassourinha, digo, Wallace.

Talvez, e o mais provável, ela estivesse protejendo a escola. A instituição que para muitos, assim como foi pro Vassourinha, digo, Wallace, o único lugar de refúgio, recreação e alimento do dia. Talvez também, tenha sido um modo de dizer que nem todos eram como a mulher enorme e que ninguém mais faria mal a ninguém.

Seo Paulo teve um AVC naquele mesmo dia e foi abrir as portas pro Wallace. Digo, Vassourinha.

Eu nunca mais comi ovo, mas eu soube que o Vassourinha tinha uma irmã mais nova e era pra ela que ele recolhia o que restava dos ovos no pátio.

Quem veio primeiro, o Wallace ou o Vassourinha?

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Entrecidades Kintsugi
Enviado por Entrecidades Kintsugi em 02/07/2019
Reeditado em 14/03/2020
Código do texto: T6686348
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