Vaticínio.
30/06/2019 - 11:00hs da manhã.
Eu conferia as mensagens recebidas pelo WhatsApp quando o Cleber se aproximou e fez proposta de tomarmos um chope. Ele queria falar do seu empreendimento, a fabricação de sandálias. Aceitei o convite por três motivos: primeiro, porque logo notei que ele estava atrás de um ouvido amigo; segundo, porque, bem antes dele aparecer eu já estava decidido a beber uma cerveja; e, terceiro, porque ele acreditou em mim para confidenciar as suas últimas novidades e me senti bem face ao apreço demonstrado.
Antes de continuar, me permite esclarecer aqui uma coisa, a minha amizade com o Cleber vem de longa data, mas é do tipo que nos encontramos esporadicamente, sempre foi assim. Hoje moramos em bairros adjacentes, quando nos conhecemos ele morava numa casa própria bem mais perto de onde eu moro. Durante muito tempo ele foi filiado ao PT e prestava serviço para os políticos do partido. Quando a gente eventualmente se encontrava na rua e parava para conversar e beber cerveja, ao final acontecia dele pagar a conta sem cobrar de mim o valor devido ao meu consumo, porém, quando eu tinha oportunidade, dava-lhe o troco numa boa. Já de alguns anos sei que o meu amigo vem enfrentando enormes adversidades: o seu velho adoeceu; ele deixou sua casa vazia e foi morar com o enfermo, na residência do mesmo; se desvinculou do partido e ficou desempregado; deu entrada na aposentadoria junto ao INSS, teve o pedido indeferido e acabou entregando seu processo nas mãos de um advogado, seu conhecido; em seguida o velho faleceu; sem dinheiro ele vendeu a sua casa, único bem que possuía em seu nome, legado do pai; precisando trabalhar comprou maquina e matéria prima e investiu na produção de sandálias femininas personalizadas, mas que, infelizmente, ainda não deslanchou; e os recursos que conseguiu com a venda do imóvel se acabaram. Continua:
- Onde a gente vai beber? Perguntei.
- Vamos ao bar do meu amigo Artur, ele respondeu. Eu pago o chope.
Meu amigo está desempregado, por isso vive na maior dificuldade, eu sei disso. Ao ouvir rua resposta eu imaginei que ele tivesse enfim conseguido levantar algum dinheiro, visto que, ultimamente, das vezes que juntos paramos para beber fui eu que arquei, se não com toda a nossa despesa, com pelo menos a maior parte dela. Não considero muito, porque a diferença nunca vai além de duas ou três garrafas de cerveja, raro a gente ultrapassar esses números. E tendo dinheiro suficiente na carteira, não me importo se tiver de desembolsar um pouco mais.
Bem, caminhamos até o local e nos deparamos com o bar ainda fechado apesar do horário. Então retornamos ao restaurante vizinho por onde passamos. Entramos até o fundo do estabelecimento e escolhemos um lugar onde pudéssemos ficar a vontade para falarmos de negócio. O garçom arrumou a mesa e não demorou a nos entregar duas canecas de chope bem gelado, uma delícia!
Acomodados e bem servidos o Cleber deu início a conversa, não sem antes me perguntar: - E a tua aposentadoria, já resolveu? Respondi que não, no entanto continuo acompanhando o andamento do meu processo que agora foi parar em Brasília, continuei falando. Na capital tudo é muito demorado, os funcionários, parece, fazem corpo mole, não trabalham. Pelo andar da carruagem e dependendo da minha sorte só espero receber alguma novidade referente ao recurso impetrado lá pelo fim do mês de agosto.
- A minha aposentadoria também não sai, cara, está lá, parada, nas mãos do advogado. Como é que você está se virando de grana?
- Eu gostaria de não precisar, mas enquanto o meu benefício não sai, continuo “trabalhando” na minha confecção de uniformes, melhor, sempre que os clientes antigos entram em contato, pedem e aprovam os meus orçamentos, recebo via e-mail os pedidos que eles mandam. Então, via telefone compro todo o material necessário e o fornecedor entrega em casa, depois aciono o cortador, em seguida as costureiras e também a empresa de bordado ou a de silk, todos... Eles executam o serviço pra mim. Produzidas as peças e depois de tudo embalado eu me encarrego de entregar o material ao cliente. Claro que vai tudo acompanhado de nota fiscal, que eu mesmo faço a emissão, e boleto bancário expedido pelo banco, eu trabalho com o Itaú. Este ano, mesmo agindo dessa forma - sem ir atrás de fazer a venda ou conquistar novos clientes e sim o oposto, o cliente já cadastrado é quem tem feito o contato e efetua a compra do que precisa -, pelo menos até agora consegui faturamento que cobriu minhas despesas mensais com folga.
- Maurício, eu também preciso fazer dinheiro, certo? Então decidi que vai ser com as minhas sandálias mesmo. É um produto que já produzo e sei como fazer, e não tenho outra opção. Resolvi que, de agora em diante eu vou meter a cara. Tomei essa decisão. Hoje já tenho um rol de pessoas pra fazerem as vendas do meu material e estou trabalhando para dobrar de tamanho o número de vendedores. Desse grupo, dois são donos de loja. Além deles dois tem mais uma amiga, dona de um salão de beleza que topou negociar meus calçados para me ajudar. Outra, uma vendedora de roupas, solicitou e eu aceitei, expor algumas peças em consignação dentro da sua loja. E tenho ainda um conhecido querendo muito comercializar meus chinelos, com um porém, a ele só interessam os de sola quadrada, com cores e tamanhos variados. Para você compreender melhor, quando eu encomendo solado para calçados comuns, o fornecedor me entrega ele já cortado e furado, nos tamanhos que eu precisar e com o mínimo de perda. Para os quadrados, sou eu quem tem que corta-los manualmente. A produção fica mais lenta e o custo final é maior, devido ao tempo gasto e à grande quantidade de refugo. Por esse motivo estou priorizando os clientes que pedem chinelas comuns, mas vou atender ele também com o solado quadrado assim que eu puder. Ele não está descartado, não. Lembrei agora de uma dívida alta que você me falou certa vez. Já conseguiu acabar com ela ou não?
- Você se refere à dívida acumulada da minha empresa. É, sem dúvida está alta, mas não me preocupa, porque não sofre incidência de juros e evito que saia do meu controle, acompanho de perto. Quando os atrasados que tenho a receber do INSS entrarem na minha conta, será suficiente para liquidar esses compromissos com tranquilidade. Já fiz os cálculos. Independentemente disso, eu tenho patrimônio - carro, maquinário, estoque - que, em havendo necessidade, posso vender a qualquer hora para saldar esses débitos. Estou despreocupado.
- Sem querer cortar a tua fala, na semana passada, numa visita ao meu fornecedor em Campo Grande, deparei-me com uma máquina que aplica silk em vários produtos, por exemplo: em camisetas, copos, na própria sola que eu uso para fabricar as sandálias, em bonés... Fiquei admirado e logo enxerguei a possibilidade de acrescentar, junto aos chinelos, um leque de produtos personalizados para oferecer aos meus clientes. O valor do maquinário novo é de R$ 1.200,00. O cara me ofereceu aquele, na sua loja, por R$ 600,00, metade do preço. Comprei! E não vejo a hora de começar a usar o aparelho para produzir seja lá o que for. Estou me sentindo motivado, e para você ter uma ideia do meu compromisso com o trabalho, aumentei meu estoque de chinelas prontas, que hoje soma 600 pares com cores e tiras variadas. Com essa quantidade à mão não perco mais nenhum pedido, e sendo pronta entrega, o dinheiro logo entra no caixa.
- Sim.
- Você entende do assunto, eu sei. Ouve essa: Eu decidi ter uma conta bancária exclusiva para ajudar no controle dos produtos que eu vender e que seja inteiramente desvinculada da minha pessoal. Fui ao Banco do Brasil providenciar. Preenchi dados, apresentei os documentos necessários e assinei o contrato. Tudo pronto e finalizado, a atendente falou pra mim o seguinte: - Senhor, por favor, aguarde só mais um instante que eu vou conferir se já tem dinheiro disponível na sua conta. “O que?! Mal iniciou o serviço e já tem dinheiro disponível, sem que eu tenha feito ao menos um depósito! Não acredito”. Isso era eu pensando. Não demorou e ela girou a tela do monitor para mostrar os R$ 10.700,00 inteiramente livres para eu usar. Fiz o saque na hora!
Enquanto falava da quantia e da retirada, o Cleber ostentava ligeiro sorriso de alegria e satisfação estampado no rosto, dava a impressão de que tinha ganhado todo aquele dinheiro.
- Eu não acredito! Você sacou os 10 mil reais? Isso é um cheque especial para uso emergencial, cara. O juro que os bancos cobram por essas operações é muito elevado, da ordem de 300% a.a. fora o IOF - imposto sobre operações financeiras -, você não vai conseguir pagar essa dívida.
- Que nada, juro de 2%. Agora, vou ter que trabalhar, né! Esse dinheiro tem isso de bom, obriga a gente a correr atrás.
- Me diz, há quanto tempo você está envolvido com esses calçados, dois anos, três?
- Eu iniciei, parei um tempo, voltei. Digamos que eu esteja trabalhando com essas sandálias há pelo menos dois anos seguidos.
- Tudo bem, então me responde: Você já consegue viver dessa atividade?, quero dizer, o que você fatura com as suas vendas cobre as suas despesas do mês?
- Ainda não. Por isso é que eu aumentei o estoque de produtos prontos e estou empenhando todo esforço possível para ampliar o número de vendedores; hoje, contando comigo, já somos 12; além disso comprei a máquina de silk, da qual eu te falei, justamente para alavancar as vendas, e com maior número de produtos diversificados para oferecer, não vai ser difícil. Um dia desses eu saí para comprar um expositor vertical que vi na Internet. Aberto, o bruto parecia uma loja, era grande demais. Não comprei, porém vou pesquisar até achar um que atenda a minha necessidade; o que eu tenho é muito pequeno, não ajuda, preciso de um maior, portátil também, para quando eu tiver que participar de eventos; se eu conseguir uma estante do jeito que eu imagino, terei mais um equipamento para impulsionar o comércio dos produtos, percebe?
- Cleber, me ouve, não gaste toda essa quantia, guarde ao menos a metade, e se você perceber que o juro é muito alto, não vacile, devolva para o banco todo o dinheiro que tiver em mãos, diminua tudo que for possível dessa dívida e livre-se dela o quanto antes. É sério! Enquanto eu falava, percebi que ele não estava interessado em me ouvir, não insisti.
Tudo dito, a gente mudou de assunto, falamos dos amigos, das nossas famílias, da vida no bairro, até que pedimos ao garçom que trouxesse a nossa conta. Eu colaborei com a minha parte.
Em casa eu voltei a pensar em tudo que ouvi do meu amigo, e a todo o momento a história se repete, é espontâneo. Não me sai da cabeça que ele ficou deslumbrado com os 10 mil reais, pensa que o juro no Banco do Brasil - banco do governo - é de 2% apenas. Fiz questão de reproduzir toda a nossa conversa para deixar registrado aqui um pressentimento cuja ameaça por si só já me causa um mal terrível. Eu não quero estar certo e espero que minha suspeita jamais se concretize: filho único, o Cleber perderá o imóvel que ainda lhe resta e que ele tem para morar, também legado do pai. O banco tomará dele esse patrimônio. E, se ficar sem teto, levará consigo a filha e o neto pra morar na rua.