O dia em que seremos felizes

“Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.”

Freud

Grossas nuvens de chuva e frio chegavam à cidade, vindas da Argentina passando antes pelo estado do Paraná. As nuvens chegavam devagar, mas com o passar do tempo iam avolumando-se de tal modo que qualquer brisa mais afoita, era suficiente para fazê-las se abrir numa torrente volumosa e continuada por minutos.

Ana Lívia olhava pela janela as rajadas de água que batiam contra a casa e o muro. O vento assoviava e os fios elétricos quase se tocavam perigosamente. Relâmpagos e trovões completavam um quadro assustador.

O avô de Ana, recostado numa antiga poltrona, resmungava contra o tempo e contra ela.

-Que merda, gritou o velho, se você tivesse vindo mais cedo eu não ficaria sem os meus remédios! Anda, vai logo buscar, sua irresponsável.

Roendo as unhas e contendo um xingamento, a moça olhou para ele e disse:

-Vovô, eu sou uma só! Tenho que estudar, trabalhar, limpar a casa e ainda ir à farmácia para o senhor? Por que não ligou para o atendente? Eles poderiam trazer aqui.

Pigarreando e tossindo o velho lançou um olhar duro de raiva e surpresa para a neta. Levantando-se, foi até a janela, olhou por cima do ombro e rilhando os dentes amarelos disse:

-Por que você está com o meu cartão!

A moça fez uma cara de sombra e estalando nervosamente os dedos respondeu com um travo na voz:

-Droga, vô! E o senhor não pode esperar até amanhã?

O avô respondeu alguma coisa que não era para ser ouvida ou não pôde ser ouvida devido ao estrondo de um trovão bem perto. A moça afastou-se da janela com um arrepio nervoso. Sentou-se rapidamente no sofá.

-E tem mais, vociferou o idoso. Aqui você tem casa e comida de graça. Se não está contente pode ir procurar a sua mãe.

A chuva amainou um pouco, mas os relâmpagos e o vento disputavam uma corrida no céu sobre a cidade. Respirando fundo e engolindo o choro a neta levantou-se, foi até a geladeira e pegou a chave do fusca. Olhou para o avô e o viu de pé com uma mão no cajado e a outra apoiada na parede. O surrado moletom cinza escorregava nádegas abaixo. Ele tremia e seus pés magros, de unhas compridas, pareciam tábuas de passar.

Um sentimento rápido como um raio a fez sentir pena do velho. De sua garganta saiu uma voz embargada:

-Me dá a receita vô, que eu busco o calmante.

O idoso apontou para uma gaveta no armário. Ela retirou o papel amarrotado lá de dentro junto com um documento de identificação. Olhou para o avô com um cansaço enorme nos ossos, nos olhos uma lágrima ardida descia devagar. Então, caminhou arrastando os pés enquanto o avô falava a contragosto:

-Cuidado com os buracos da pista, heim?!

Lá fora, a chuva engrossava novamente. Ana teve de sair correndo com o casaco na cabeça até alcançar o fusca na calçada. Os relâmpagos, vez por outra, clareavam toda a rua. Da janela, os olhos opacos do velho semicerravam por causa do brilho alucinado dos clarões. Enquanto a chuva se derramava sem parar, o avô, tossindo e resmungando falava sozinho.

-Ela devia saber que eu não fico sem meus remédios...

O vento fustigava a lataria do carro e Ana Lívia acelerava constantemente. À sua frente, até onde podia ver, a chuva cobria toda a cidade. Olhando pelo retrovisor ela enxergava os relâmpagos rebrilhando lá atrás. Pareciam estar, todos eles, sobre a casa do velho. De repente, um pensamento cruel veio das profundezas de seu corpo e passou pela cabeça. Ela sorriu tristemente na escuridão do carro. Depois, um pouco mais triste, se lembrou de quando, ainda adolescente, diluía os calmantes da mãe no suco de laranja do avô.

Naquela época tinha um namoradinho. O avô não gostava dele. Já a mãe trabalhava em dois hospitais, mal tinha tempo para falar. Então, ela fazia o idoso dormir com os calmantes. Um dia, sem falar nada, a mãe foi embora com o seu namorado. Na casa ficaram ela, o avô e uma dor constante. Que doeu muito. Mas, passou. Assim como essa tempestade vai passar, pensou a garota.

A chuva foi embora completamente. Apenas o vento vestia a pequena cidade com o frio argentino. Ana Lívia parou de frente à farmácia. Desceu correndo. Saiu de lá cinco minutos depois com uma sacola de remédios e um drops de hortelã. Entrou tranquilamente no fusca e enxugando o nariz, com as costas das mãos, ela continuou dirigindo devagar. Ia olhando as residências todas com suas luzes acesas. Na frente das casas as árvores molhadas agitavam-se suavemente. Das janelas iluminadas pessoas olhavam para fora. Pareciam bem felizes.

make
Enviado por make em 29/06/2019
Reeditado em 15/08/2020
Código do texto: T6684349
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